As duas desestatizações
- Ignacio Rangel
- 20 de out. de 1989
- 3 min de leitura
Folha de S. Paulo (21/10/1989)
Num país de economia capitalista - como o é a nossa, no fundamental - o Estado pode ser chamado a incorporar ao setor público empresas em crise, por duas razões. Em primeiro lugar, a empresa pode estar superinvestida e, em segundo lugar, estar subinvestida. Reciprocamente, a desestatização deverá ser chamada a resolver problemas muito diferentes, conforme se trate deste ou daquele caso.
As privatizações em curso, atualmente, no Brasil, costumam classificar-se no primeiro caso, isto é, empresas que, não encontrando demanda efetiva à altura do seu patrimônio, entraram em crise e, por isso, foram estatizadas - ou assim permaneceram, nos casos em que já nasceram estatais, como é o caso da Mafersa - . Ora, nada mais esdrúxulo do que pretender que uma empresa nessas condições tenha um valor de Bolsa compatível com o seu valor patrimonial.
Temos também empresas que, não interessando ao investidor privado, por motivos que logo examinaremos, ficaram na dependência de investimentos públicos e, visto como o setor público esgotou sua capacidade de investir, deixaram-se ficar para trás, em matérias de implantação de capacidade produtiva. Por isso mesmo, ou foram estatizadas ou permaneceram como tais.
A economia brasileira está em crise, atualmente, no essencial, porque sua capacidade de investir distribui-se assimetricamente com suas oportunidades de inversão. A liquidez do sistema revela-se no setor privado, ao passo que as oportunidades de inversão manifestam-se no sistema público. A privatização deve resolver esse problema, isto é, levar para onde se encontra a liquidez do sistema, as oportunidades de investimento, Compreende-se que privatizar empresas já superinvestidas, como são os casos da Nova América, da Mafersa e outras, não resolve nenhum problema.
Problema, é certo. existe. Essas empresas superinvestidas, com capacidade produtiva em descompasso com a demanda específica efetiva para os seus produtos, estão em crise. Mas a solução desse problema, ou estará na configuração de nova demanda, ou na reorientação de sua oferta, para o caso de surpreendermos demandas específicas não atendidas ainda. Até certo ponto, isso aconteceu com a Mafersa, quando ela, em vez de produzir vagões ferroviários para os quais não havia demanda solvente, foi levada a produzir caminhões e ônibus.
Mas a Mafersa foi uma empresa concebida para atender a uma clientela determinada: de material ferroviário. Sua saúde deve, consequentemente, refletir o estado geral dessa clientela, e sua crise reflete precisamente a crise desta. A verdadeira solução do seus problemas - como das empresas congêneres, carregadas de capacidade ociosa - deve ser buscada fora delas, isto é, nas atividades integrantes de sua clientela.
No caso específico da Mafersa, essa clientela é o sistema ferroviário brasileiro. Este deixou-se retardar, por bãs razões, estando atualmente estruturado como serviço público concedido a empresa pública. Não apenas sua demanda de bens de investimento é preguiçosa, como, não tendo como financiar suas próprias compras, não consegue efetivas mesmo essa demanda preguiçosa, perdendo a concorrência para outros produtores, principalmente estrangeiros. O caso dos vagões para o Metrô de Porto Alegre, os quais acabaram sendo comprados a crédito ao Japão, é eloquente.
A solução do problema da Mafersa - bem como de muitas outras empresas supridoras de bens de equipamento - virá quando mudar a equação econômica-financeira de sua clientela. Noutros termos, trata-se de reestruturar o serviço de transporte ferroviário, o que, em última instância, dependerá da revisão do direito de concessão brasileira. O transporte ferroviário é, afinal, apenas um dos serviços públicos ora estruturados como concessões a empresas públicas e que deverão ser reorganizados como concessões a empresas privadas.
Isto posto, será irrelevante saber se essas empresas pejadas de capacidade ociosa permanecerão como empresas públicas, ou serão privatizadas. Com a ressalva de que, devendo ser privatizadas, desde que confrontadas com uma demanda solvente suficiente, seu valor de mercado será comparável, ou mesmo maior do que seu valor patrimonial, até porque o valor de mercado de uma empresa tende para a capitalização do próprios lucros, os quais no caso de capacidade ociosa, ficam deprimidos.
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