Ignacio Rangel: o mais criativo e original analista do desenvolvimento econômico brasileiro
- Armen Mamigonian
- 11 de fev.
- 25 min de leitura
Atualizado: 12 de fev.
1. Introdução
O título deste artigo enfatiza a opinião de R. Bielschowsky (“Pensamento Econômico Brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo”, 1988), que analisou o pensamento de dezenove intelectuais brasileiros, neoliberais encabeçados por Eugênio Gudin, setor público não nacionalista encabeçado por Roberto Campos, setor privado encabeçado por Roberto Simonsen, setor público nacionalista encabeçado por Celso Furtado e socialistas encabeçados por Caio Prado Júnior, além de Ignacio Rangel, com pensamento independente.
"O pensamento independente de Ignacio Rangel" recebeu trinta páginas, subdividido em: 1. Introdução; 2. A teoria do desenvolvimento econômico; 3. A tese da dualidade básica da economia; 4. Capacidade ociosa, funcionamento do capitalismo e o uso de Marx e Keynes; 5. Inflação e crise; e 6. O significado histórico da formação do sistema financeiro nacional.
A obra de Rangel, conforme R. Bielschowsky (Informe Corecon – RJ, 3/1994), corresponde a um original ensaio de adaptação do materialismo histórico e da teoria econômica à análise do caso brasileiro, que o autor empreendeu com o sentido de uma busca sistemática do entendimento da universalidade e da especificidade dessa formação histórica e do funcionamento da economia brasileira. Para ele a especificidade dessa formação "não quer dizer que a economia que estudamos em livros estrangeiros e adotamos em nossas escolas não seja científica. Significa que afora a técnica de tratamento dos fenômenos econômicos (...), tudo muda na ciência econômica ao mudar a realidade estudada".
Nessa busca Rangel construiu um quadro analítico original, com o qual teorizou sobre o desenvolvimento brasileiro. A marca de sua própria teoria está presente em suas análises, especialmente nas suas discussões sobre planejamento, reforma agrária e inflação e crise dos anos 1960.
Divergiu, nesses trabalhos, de todas as correntes de pensamento então existentes. Essa independência custou-lhe considerável solidão intelectual. Nacionalista e socialista, era um participante entusiasmado da vida intelectual de núcleos como o ISEB e o Clube dos Economistas – RJ, mas teve coragem de enfrentar, sozinho, as correntes de pensamento preponderantes, inclusive na explosiva questão da reforma agrária, concluiu R. Bielschowsky.
Tendo analisado o pensamento econômico de inúmeros intelectuais brasileiros, R. Bielschowsky tornou-se leitura obrigatória para entender a formação econômico-social brasileira. Assim sendo, cabe-nos perguntar: quais as ideias mais importantes de Ignacio Rangel, como surgiram e que papel desempenharam na vida brasileira?
2. A dualidade básica da economia brasileira e a história do Brasil (I)
A dualidade básica da economia brasileira nasceu da visão marxista-leninista de Ignacio Rangel e foi exposta pela primeira vez em 1947, em prova na Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, onde voltou a estudar após a interrupção do curso em São Luís do Maranhão. A ideia surpreendeu o professor, que elogiou sua originalidade, mas só foi publicada dez anos depois (“Dualidade básica da economia brasileira”, ISEB, 1957) e retomada várias vezes mais tarde (“A história da dualidade brasileira”, Rev. Econ. Política, n. 4, 1981). Convém lembrar que R. Bielschowsky, apesar de arguto estudioso do pensamento de Ignacio Rangel, não ter dado importância à influência das ideias de V. Lênin, sobre o imperialismo, por exemplo, na formação intelectual de Rangel, nem ter apontado para o fato de que a dualidade econômica ocorreu e ocorre, em maior ou menor grau, em toda a periferia colonial e semicolonial do capitalismo hegemônico: América Latina, África e Ásia, bem como nos antigos Impérios russo, austro-húngaro e otomano.
Enquanto Caio Prado Júnior (“História econômica do Brasil”, 1969) e Celso Furtado, entre outros, preferiram destacar a gênese do Brasil como colônia exportadora de bens tropicais para as metrópoles europeias, sem dar a devida importância aos modos de produção que constituíram a formação social, Ignacio Rangel lembrava que a condição de colônia significava inserção na economia mundial como relação econômica mais importante e, por isso, com maior dinamismo, não somente no período colonial, mas ao longo de toda nossa história.
Não de deve esquecer que já no período colonial se manifestava a existência dos dois lados: o externo e o interno. Pelo lado externo, todas as terras da colônia eram propriedade do rei de Portugal desde o Tratado de Tordesilhas, o que tornava os senhores de engenhos de açúcar, donos de escravos, vassalos do rei português. Assim, o donatário de Pernambuco e seus descendentes viram-se obrigados a enviar tropas militares para acompanhar o rei D. Sebastião à sua aventura desastrosa na África. Também foram obrigados a enviar tropas para expulsar os franceses do Maranhão, bem como lideraram a luta pela expulsão dos holandeses do litoral açucareiro, unindo portugueses, africanos e indígenas, dando origem ao nativismo da colônia.
Naqueles anos da primeira metade do século XVII, o padre Antônio Vieira talvez tenha sido o primeiro intérprete do Brasil nascente. Português de origem modesta, com avó afrodescendente, dizia que sem Angola não haveria escravos e sem escravos não haveria açúcar. Defendia a ideia de que, na colônia, portugueses e africanos estavam criando uma sociedade razoavelmente tolerante, incorporando judeus expulsos da metrópole pela Inquisição, que ele combatia e por ela era perseguido, conforme Stuart Schwartz (“Cada um na sua lei”, 2009) e R. Vainfas (“Antônio Vieira, jesuíta do rei”, 2011). Ele inspirou inúmeros intelectuais portugueses e brasileiros, entre eles Gilberto Freyre, que deu grande importância ao que chamou de "Mundo luso-brasileiro". Deve-se dizer que Antônio Vieira, ao propor o que chamava de "Quarto Império", sucessor do Império Romano, sob liderança portuguesa, não imaginava que o Brasil acabaria se tornando um "Grande Portugal", com presença na América Latina, África e outros lugares.
3. A dualidade básica da economia e a história do Brasil (II)
A dualidade básica estava claramente esboçada no período colonial a acabou se impondo com a Independência, que foi um processo distinto da Independência das colônias espanholas, onde os líderes militares como Bolívar, San Martin e O'Higgins acabaram exilados, enquanto no Brasil a Independência foi proclamada por D. Pedro I, príncipe português.
Espanha e Portugal tiveram histórias diferentes. Cervantes, com o Dom Quixote, deu vida aos contos medievais de cavalaria, pois a Espanha era um gigantesco feudo, enquanto Camões, com Os Lusíadas, destacou o lado marítimo do seu país: "as armas e os barões assinalados, que da ocidental praia lusitana, por mares nunca dantes navegados." Cervantes e Camões inspiraram muitos outros intelectuais, como Julio Cortázar e Fernando Pessoa.
Na história portuguesa o Marquês de Pombal, assim como Frederico II (Prússia), Catarina (Rússia) e Gustavo IV (Suécia), fez parte do Despotismo esclarecido, atento às ideias do Iluminismo francês, como assinalou F. J. Calazans Falcon (“Despotismo esclarecido", 1986), movimento que inspirou a via prussiana de transição do feudalismo ao capitalismo, como apontou V. Lênin. Basta lembrar que Bismarck, o grande líder alemão, foi um discípulo explícito de Frederico II.
O Marquês de Pombal, como ativo participante do Despotismo esclarecido, apostou na expansão da colônia brasileira e transmitiu aos reis portugueses, inclusive a D. João VI, a ideia de dar uma resposta às pressões de baixo. Assim foi com a Inconfidência Mineira e com as rebeliões do Nordeste (1817), a partir das quais reforçou o preparo de seu filho para proclamar a Independência.
O monopólio do comércio português com o Brasil foi quebrado em 1808, permitindo à Inglaterra assumir um dos lados da primeira dualidade, em sociedade com os comerciantes de exportação e importação brasileiros. As relações de produção escravistas foram mantidas, mas o Imperador, proprietário de todas as terras, tinha o direito de cobrar vassalagem dos senhores de escravos, que se tornaram a classe dominante da primeira dualidade. Entretanto, não se deve esquecer que o Pampa gaúcho e partes importantes do sertão nordestino foram ocupados por fazendas de gado, como propriedades feudais e seus peões agregados, antecipando a dualidade seguinte, conforme Ignacio Rangel (“A história de dualidade brasileira”, 1981).
Ignacio Rangel (“Economia: milagre e anti-milagre”, 1985) vinculou as grandes mudanças políticas brasileiras – Independência, Abolição, República e a Revolução de 1930 – aos períodos depressivos da economia mundial: 1815-48, 1873-96 e 1921-48, quando as tensões político-econômicas entre metrópoles e suas periferias tornavam-se intoleráveis ao crescimento econômico.
Durante a depressão mundial, nas primeiras décadas do Brasil independente, ocorreram várias rebeliões regionais importantes, desde o norte até o sul, além da queda das exportações brasileiras, obrigando as fazendas a substituírem importações, desenvolvendo atividades artesanais para uso próprio.
Gilberto Paim (“O pensamento de Ignacio Rangel”, UFSC, 1997) deu um rico depoimento sobre esse período, lembrando que Rangel havia indicado a leitura de V. Lênin (“O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”, 1899), que resultou no seu livro “Industrialização e Economia Natural”, ISEB, 1957. Lembrou que o Recenseamento de 1872 constatou a presença nas fazendas de centenas de milhares de pessoas, a maioria feminina, produzindo tecidos para uso local, para os senhores e para os escravos. Chamou atenção para a importância de Oliveira Viana (“Populações meridionais do Brasil”, 1920), ao afirmar que "dispersos e isolados na sua enormidade territorial, os domínios fazendeiros são forçados a viver por si mesmos, de si mesmos e para si mesmos", com olarias, serrarias, oficinas de carpintaria, oficinas de ferreiros, oficinas de artigos de couro, extração de azeite de mamona para a iluminação das fazendas etc.
Desta maneira o Brasil conseguiu crescer no período depressivo de 1815-48, substituindo importações nas fazendas de escravos, com produção artesanal variada, para consumo próprio. Décadas depois, na fase expansiva da economia mundial, passou a crescer aumentando suas exportações, confirmando a interpretação de R. Prebisch (“Hacia un dinâmico desarrollo latino-americano”, Rev. Bras. C. Sociais, 3/1963) de que a periferia tinha chances de crescer tanto nas fases expansivas, como nas depressivas dos ciclos Kondratieff, diminuindo gradativamente sua distância em relação ao centro de sistema.
A economia mundial passou por nova fase expansiva (1848-73), com o impulso das ferrovias e navios a vapor, e ao crescer rapidamente estimularam as fazendas brasileiras de café, açúcar e outros produtos a aumentar suas exportações, provocando o crescimento de suas receitas monetárias, bem como da receita cambial do país. Assim, deu-se um novo movimento de urbanização, basicamente pela transferência das casas-grandes para as cidades, não somente das famílias dos senhores, mas também de parte da mão de obra escrava e semilivre, antes ocupada na casa-grande rural em atividades substitutivas de importações, conforme destacou Ignacio Rangel (“Economia: milagre e anti-milagre”, 1985).
Encerrada a fase expansiva, iniciou-se a fase depressiva (1873-96) do ciclo Kondratieff, dando início nas cidades às unidades artesanais e manufaturas pré-industriais, trabalhadas por negros de ganho e negros de aluguel e implantadas por iniciativa do capital comercial brasileiro, liderando nova onda de substituição de importações e se preparando para substituir os senhores de escravos na direção política do país.
4. A dualidade básica da economia e a história do Brasil (III)
É importante ressaltar que Ignacio Rangel reconhecia suas dívidas com outros intelectuais, estrangeiros e brasileiros, como Caio Prado Júnior e Celso Furtado. Nem todos os economistas reconheceram suas dívidas e um caso pouco conhecido foi o de Roberto Campos, que passou a acreditar na importância dos ciclos de Kondratieff, sem nunca ter revelado. Quando membro da Delegação Brasileira na ONU, nos últimos anos de 1950, fez mestrado em N. York, sob orientação de Haberler, austro-marxista, amigo de Schumpeter, ambos professores exilados nos EUA e importantes divulgadores das ideias dos ciclos econômicos.
Caio Prado Júnior (“Evolução política do Brasil”, 1932) deu ênfase à prolongada duração do trabalho escravo no Brasil independente (1822-1889), herança do período colonial. A prolongada duração, mesmo diante de pressões externas e internas, ocorreu pelo uso de medidas paliativas, como a proibição do tráfico, a lei do ventre-livre, a lei dos sexagenários, entre outras, que diminuíram as pressões e prolongaram a escravidão. Assim, Ignacio Rangel percebeu que as mudanças políticas no Brasil – Independência, Abolição, República e Revolução de 1930 – obedeciam a essa regra, herança portuguesa, intensificada pelo Despotismo esclarecido do Marquês de Pombal.
Com Celso Furtado (“A economia brasileira”, 1954), Ignacio Rangel foi despertado para a ideia de que a partir de 1930 a economia brasileira havia engendrado um polo interno de acumulação. Daí decorreu a ideia da sucessão dos ciclos Juglar-Marx, de cerca de dez anos de duração, com fases expansivas e depressivas. Tais ciclos se sucederam de 1930 a 1980 permitindo, pela substituição de importações, a construção de um edifício industrial completo, incluindo a mecânica-pesada, como no exemplo da Villares-GE produzindo locomotivas elétricas e também a engenharia pesada, como a Odebrecht e outras, construindo a ponte Rio-Niterói, a hidrelétrica de Itaipu, a maior do mundo na época, além de outras na América Latina e na África.
Voltando à nossa exposição, vale a pena relembrar que a segunda dualidade econômica nasceu com a Abolição-República. Logo depois, em 1896 a economia do centro do sistema capitalista deu origem ao terceiro ciclo Kondratieff e à segunda Revolução industrial, liderada pelos EUA e pela Alemanha. As principais inovações foram o motor a explosão na indústria automobilística e aeronáutica nascentes e na indústria naval, substituindo a propulsão a vapor, a eletricidade se espalhou por todos os setores econômicos e uma nova organização de trabalho: o fordismo.
Esse gigantesco salto da economia mundial provocou enorme aumento das exportações brasileiras. O café logo passou a registrar safras enormes, provocando superprodução e exigindo a criação de estoques. A borracha da Amazônia abasteceu o mundo inteiro e levou à implantação da Fordlândia, além de produções concorrenciais inglesas e franceses na Ásia tropical. O cacau da Bahia nasceu e ganhou força, além de outros produtos de exportação. Novamente o Brasil voltou a crescer pelo aumento das exportações.
A fase expansiva mundial de 1896-1921 foi sucedida por nova fase depressiva (1921-48), que estimulou a eclosão da Revolução de 1930, dando origem à terceira dualidade econômica, com os EUA substituindo a Inglaterra no polo externo, em associação com a classe industrial, nascida da transformação dos comerciantes de exportação-importação.
O comando principal passou a ser exercido pelos senhores feudais ligados ao mercado interno, que lideraram pela via prussiana a industrialização por substituição de importações, como assinalado linhas acima, completada nos anos 1980, colocando a necessidade de um novo modelo econômico, a ser criado por uma nova dualidade, que não aconteceu. Cabe indagar: qual seria este novo modelo e por que não foi criado?
5. Intérpretes independentes e intérpretes dependentes
Após um breve esboço das ideias de Ignacio Rangel sobre a especificidade da formação econômico-social brasileira, baseada numa visão original do marxismo-leninismo, é importante diferenciar intérpretes independentes dos intérpretes facilmente influenciáveis.
O padre Antônio Vieira no século XVII e Ignacio Rangel no século XX certamente estiveram entre os intérpretes independentes, e por isso mesmo militantes ativos durante toda a vida, mas infelizmente não são a maioria. Vários intérpretes foram dependentes do ambiente dominante. Darcy Ribeiro, por exemplo, ao se radicalizar após a vitória do governador Brizola em 1961, frente à tentativa de impedir a posse de João Goulart, foi uma radicalização que ajudou a eclosão do golpe militar de 1964. Na mesma época Celso Furtado foi outro dos oscilantes, pois seu Plano Trienal prejudicou o governo e para ele o regime militar levaria o Brasil a voltar a ser uma grande fazenda, mas na verdade a industrialização fez grandes avanços. A listagem é grande e inclui M. Conceição Tavares, aplaudindo freneticamente a implantação do Plano Real, que provocou brutal desindustrialização e é melhor encerrá-la com FHC, que, resumindo, começou comunista e terminou agente do imperialismo norte-americano. Os influenciáveis sempre adoraram ocupar o palco, despreocupados da verdade verdadeira.
Nossos grandes acontecimentos, como a Independência, a Abolição-República e a Revolução de 1930, foram precedidos por ambientes pessimistas e seguidos de ambientes otimistas. No grupo dos intelectuais pessimistas, antes da Revolução de 1930, podemos incluir Paulo Prado, organizador da semana de Arte Moderna, de 1922, que escreveu livros importantes (“Paulística: História de São Paulo”, 1925 e “Retrato do Brasil: Ensaio sobre a tristeza brasileira”, 1928). No primeiro defendeu a tese da superioridade paulista e seu direito de hegemonia, com evidente complexo de superioridade. No segundo livro enfatizou a ideia de que o Brasil havia nascido de três raças tristes: o português, o africano e o índio, apostando na inferioridade do brasileiro. Esses dois livros indicam que Paulo Prado estava muito distante da realidade concreta e ao mesmo tempo a quilômetros de distância do nosso primeiro intérprete, o padre Antônio Vieira.
O "Ensaio sobre a tristeza brasileira" teve grande difusão, como por exemplo nas aulas de Literatura Brasileira, ministradas por Manoel Bandeira, no Rio de Janeiro e mesmo na simpatia inicial demonstrada por Gilberto Freyre, mas que nos EUA ficou impressionado vendo, em pleno inverno, o desembarque de marinheiros, de um Navio-Escola brasileiro, pulando e cantando, em maioria negros e mulatos. O pessimismo existente no Brasil antes de 1930, claramente expresso por Paulo Prado, vincula-se em grande medida à crise das exportações de café e à decadência econômica dos fazendeiros paulistas.
Com a vitória da Revolução de 1930 o pessimismo foi substituído por um clima de otimismo, que se manifestou em Gilberto Freyre (“Casa Grande e Senzala”, 1933), Caio Prado Júnior (“Evolução política do Brasil”, 1932) e Sérgio Buarque de Hollanda (“Raízes do Brasil”, 1936), mesmo expressando ideias políticas distintas.
6. O percurso político e ideológico de Ignacio Rangel de 1930 a 1950
Ignacio Rangel (1914-1994) participou em 1930, com 16 anos, da tomada do Quartel do 24o BC em São Luís do Maranhão e em 1950, com a vitória de Getúlio Vargas, logo participaria da Assessoria econômica, convidado por Rômulo Almeida, que havia tomado conhecimento de seus artigos publicados na Conjuntura Econômica. Assim, foi um percurso que começou por importante ação política e teve sequência nos estudos econômicos sobre o Brasil e o mundo, que tiveram boa repercussão, como demonstra, por exemplo, a longa correspondência trocada com F. Mauro, historiador francês.
Esse período de sua formação foi abordado com alguma minúcia no depoimento "Um fio de prosa autobiográfica de Ignacio Rangel" (1991) e também pelos artigos e debates reunidos no livro "O pensamento de Ignacio Rangel" (UFSC,1997), com destacada participação de Gilberto Paim, seu companheiro de militância no PCB. Rangel gostava de lembrar que na opinião de Schumpeter os grandes economistas haviam estruturado suas principais ideias aos vinte e poucos anos, aliás o que também se deu com ele.
Esse intérprete extraordinário da realidade brasileira nasceu no interior do Maranhão, onde seu pai, Juiz de Direito, não se deixava intimidar pelas oligarquias, e por isso era transferido seguidamente das comarcas. Herdou de seu pai a independência intelectual, o raciocínio dialético dos juízes sérios e o gosto pela cultura humanística, com leituras em francês, inglês e outras línguas. Seu pai formou-se na faculdade de Direito de Recife e adotou desde cedo o espírito de luta de sua família, pois seu bisavô esteve preso por cinco anos e seu irmão foi fuzilado, antes participantes da Revolução de 1817 em Pernambuco. Os irmãos de José Bonifácio, patriarca da Independência, tiveram destinos semelhantes e conviveram com os antepassados de Rangel.
Diante do exposto, não se deve estranhar que tenha começado, por influência do pai, sua vida política tão cedo, e logo depois tenha se entusiasmado com a leitura do Manifesto Comunista de 1848, leitor que era dos acontecimentos da Revolução Francesa, por exemplo. Tornou-se militante comunista e em 1935 liderava 200 camponeses armados, o que resultou em anos de prisão, inicialmente no Rio de Janeiro, onde ajudou a organizar vários grupos de estudos e debates. Como observador arguto da realidade brasileira e mundial, fez autocrítica de sua experiência revolucionária, em debates que envolveram Marighella e outros: 1) a Internacional Comunista pregava a revolução anti-imperialista e antifeudal, portanto com dois lados, ajudando a pensar sobre a dualidade básica da economia periférica; e 2) a reforma agrária considerada indispensável à industrialização revelou-se um erro grosseiro, pois sem ela a industrialização estava se acelerando naqueles anos.
De volta a São Luís do Maranhão, em domicílio coacto, retomou seus estudos de Direito e agitou o movimento estudantil, então paralisado. A camoanha para a eleição da rainha dos estudantes foi um sucesso, mas levou ao pwedido de afastamento dele da Faculdade de Direito, que não se submeteu e por itso foi fechada. Tentou concursos públicos, com sucesso, mas não foi nomeado. De 1940 a 1945 teve a chance de trabalhar na Martins & Irmãos, firma industrial de tecidos e algodão cirúrgico, inicialmente na correspondência com o exterior, seguida de outras funções no escritório e finalmente no chão de fábrica, onde procurou entender o processo da fabricação desde a entrada das matérias-primas até a saída dos produtos acabados.
Ignacio Rangel acabou descobrindo setores com máquinas ociosas, portanto superinvestidos e outros setores subinvestidos, verdadeiros “nós de estrangulamento” significando que a empresa deveria comprar máquinas para estes setores e não para os setores de máquinas ociosas. Essa observação simples, mas muito importante, não era do conhecimento de empresários. Aprofundando essa ideia Ignacio Rangel percebeu que a situação era a mesma no conjunto da economia brasileira e que nas sucessivas crises decenais juglarianas a saída correta era transferir recursos dos setores superinvestidos para os setores carentes de investimentos (“Elementos de economia do projetamento”,1960). Mais tarde, trabalhando no BNDE viu colegas encarregados de analisar projetos e dar pareceres não terem noção disto.
A lenta abertura política dos anos 1944-45 permitiu sua saída para o Rio de Janeiro, onde começou trabalhando na tradução de novelas policiais, como X-9 e Meia Noite, com remuneração insignificante, mas depois traduzindo notícias da Reuters, France Press e outras agências, com remuneração melhor, além de livros marxistas para a Editora Vitória, do PCB, sempre com a ajuda de sua esposa. Com remuneração melhorada passou a dividir os meses, com uns 10 a 15 dias para estudar economia, sobretudo Marx, Engels, Lênin, Schumpeter e Keynes e também história econômica do Brasil, como os escritos do Barão de Mauá. Assim, para seu uso próprio, preparou vários artigos, alguns deles enviados à publicação por iniciativa de Gilberto Paim, amigo desde que se instalou no Rio.
Participou da célula Theodor Dreiser, do PCB, onde expôs várias vezes suas ideias autocríticas sobre a questão agrária, o que desagradava os dirigentes comunistas, que acabaram fechando a célula em fins de 1946 e pouco depois queriam forçá-lo a retornar ao Maranhão. Como negou-se a voltar acabou excluído do PCB, recebendo em seguida um suspeito convite de participação no governo Dutra. Entretanto, em 1950 recebeu de Rômulo Almeida o honroso convite para integrar a equipe econômica da Confederação Nacional das Indústrias.
7. Assessoria econômica no governo Vargas, doutorado na CEPAL, trabalho no BNDE e no ISEB.
A participação de Ignacio Rangel na Assessoria econômica do governo Vargas exigiu enfrentar vários desafios, justamente com outros intelectuais, como Rômulo Almeida e Antônio Strauss, ex-integralistas; Guerreiro Ramos (“A redução sociológica”, 1958), que ele considerava uma das cabeças mais organizadas que conheceu; Jaci Miranda, Neuda de Figueiredo e Jesus Soares Pereira, provavelmente o mais importante do grupo e que assumiu a chefia em 1953.
Na verdade, o governo Vargas encontrou o Brasil financeiramente quebrado, pois durante o governo Dutra, sob pressão dos EUA, as divisas em dólares acumuladas durante a Segunda Guerra Mundial foram desperdiçadas com importações desnecessárias, inclusive provocando o fechamento da Fábrica de Alumínio em Ouro Preto-MG. Além disso, o quinquênio 1951-55 foi depressivo, seguido do quinquênio expansivo durante o governo JK. Mesmo assim, a Assessoria trabalhou com muita competência, como assinalou M. Costa Lima (“Os boêmios cívicos”, 2013).
Antes disso, durante o primeiro governo Vargas o Brasil cresceu fortemente pela via da substituição de importações industriais, inclusive com a implantação da Cia Siderúrgica Nacional, financiada pelo governo Roosevelt. Durante o referido primeiro governo, Jesus Soares Pereira (1910-1974), positivista assumido, exerceu funções no Departamento Nacional de Produção Mineral (1933), no Conselho Federal de Comércio Exterior (1937-45) e no Conselho Nacional do Petróleo, criado em 1938, onde teve boa convivência com E. Geisel. É importante lembrar que Getúlio Vargas e Roberto Simonsen, que havia retornado do exílio, acompanhavam esses dois órgãos.
A principal tarefa da Assessoria Econômica foi estudar a questão do petróleo, pois éramos apenas importadores de gasolina e diesel da Esso, Shell, Gulf e outras empresas oligopólicas, dominantes no mundo capitalista. A descoberta de petróleo na Bahia demonstrou que geólogos a serviço das multinacionais eram mentirosos. Aliás, a campanha do "Petróleo é nosso" teve grande mobilização popular e apesar da unanimidade da grande imprensa brasileira ter sido contrária ao monopólio estatal, a Petrobrás foi criada e se expandiu. Seu projeto econômico foi preparado por Jesus Soares Pereira, com participação jurídica de Ignacio Rangel. Registre-se que logo após a criação da Petrobrás, a norte-americana Gulf retirou-se do Brasil.
Ainda na Assessoria, ambos prepararam o projeto da Eletrobrás, também mal visto pelas multinacionais, que acabou adiado, e também o Plano Nacional de Eletrificação. Ignacio Rangel preocupou-se com o financiamento das obras, lembrando que a eletricidade era um serviço público, cuja capitalização iria depender do apelo ao mercado de capitais, e a emissão de debêntures exigiria o oferecimento de garantias hipotecárias, que era função do Estado e não das empresas. A resposta de Jesus Soares Pereira resolveu a dúvida: "mas em quantos anos chegará a crise que você está prevendo?" e assim o esquema proposto começou a entrar em prática e durou três décadas e nesse período enquanto a média mundial de aumento de instalações elétricas foi de 7.5 vezes, o Brasil multiplicou 13,6 vezes, construindo Itaipu, Tucuruvi e outras, a URSS 9,2 vezes e os EUA 4,4 vezes, conforme I. Rangel (“Economia: milagre e anti-milagre”, 1985).
O diálogo de 1954 na Assessoria econômica surtiu efeito, mas os gastos das empresas estatais em eletricidade, rodovias, portos etc. tornaram-se gigantescos, com endividamento insuportável do Estado brasileiro trinta anos depois, exigindo solução. Muito antes disso, Jesus Soares Pereira foi cassado em 1964, com o argumento de que se tratava de um marxista, mas Rangel discordava do tenente-coronel, com o argumento de, sendo ele próprio marxista, sabia o que estava falando. Dez anos depois acabou falecendo, fazendo muita falta à luta que Ignacio travou praticamente sozinho e acabou derrotado, como veremos mais adiante.
Na Assessoria Econômica Ignacio Rangel teve contato direto com a presença do imperialismo norte-americano, que se manifestou durante a gestão de Osvaldo Aranha no Ministério da Economia, cobrando mudanças na relação cambial com o dólar. A resposta esteve à altura da pressão, estabelecendo-se vários níveis cambiais, com dólar mais barato para importação de máquinas, ferramentas, livros etc., e com o dólar mais caro para importação do que o Brasil já produzia, como tornos-mecânicos de oficinas, por exemplo. Esses diferentes níveis cambiais deram grande impulso à industrialização brasileira, não somente à indústria mecânica. Entretanto, naqueles anos, a força maior do imperialismo se manifestou na tentativa de deposição de Getúlio Vargas em 1954, que respondeu com seu suicídio.
Na ocasião da morte de Getúlio Vargas, Rangel estava em Santiago do Chile, preparando sua tese “O desenvolvimento econômico do Brasil”, outra importante experiência com ricos diálogos travados com R. Prebisch e Juan Ahumada, que aceitaram sua sugestão de incluir no curso ministrado a disciplina de projeto de economia. O professor norte-americano de estatística comemorou efusivamente o suicídio de Vargas, recebendo vigorosa reação de Rangel, protestando e dizendo que a partir daquele dia se considerava um getulista.
Deve-se registrar também que enquanto escrevia sua tese, ouviu de Celso Furtado, professor na CEPAL, que deveria assumir o esquema explicativo "oficial", com resposta negativa e a ameaça de voltar ao Brasil. Sua tese escrita em espanhol foi aprovada, mas não se encontra hoje em dia na biblioteca da CEPAL, contra dezenas de livros de Celso Furtado. É um sinal dos tempos e das pessoas...
A atuação de Ignacio Rangel no BNDE foi muito longa, desde 1954 até sua morte, pois mesmo aposentado continuou presente. Naqueles longos anos atuou também no ISEB, criado durante o governo JK e extinto em 1964, com o golpe militar. Nesse período publicou vários livros, entre os quais “Introdução ao desenvolvimento econômico brasileiro” (1955), “Desenvolvimento e projeto” (1956), “Dualidade básica da economia brasileira” (1957), “Elementos de economia do projetamento” (1959), “Recursos ociosos e política econômica” (1960), “A Inflação brasileira” (1963) e “Economia: Milagre e anti-milagre” (1985), além de várias coletâneas de artigos, como “Textos sobre a questão agrária” (1955-1989),” Do ponto de vista nacional” (1960-61), “Ciclo, tecnologia e crescimento” (1969-1981), “Economia brasileira Contemporânea” (1983-1987) e também artigos avulsos.
Como funcionário do BNDE manteve a prática de descer alguns degraus, com o intuito de conhecer a realidade diretamente, como por ocasião de dar parecer a um pedido de empréstimo da Cia. de Eletricidade do Vale do Itajaí, quando se deslocou do Rio de Janeiro a Blumenau-SC. Além de inúmeros pareceres, realizou palestras em muitas cidades brasileiras, como São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, S. Luís do Maranhão, Florianópolis, Santa Maria - RS e outras. Em São Paulo, onde esteve várias vezes, participou de iniciativa do Centro de Estudos Avançados da USP sobre a questão do Tempo e da Economia, com a presença de Giannetti da Fonseca, que discorreu sobre as frações de segundos que o investidor teria para comprar ou vender ações. A exposição de Ignacio Rangel versou sobre ciclos econômicos, levando Giannetti a ironizar os "anos gregorianos", vigentes na Rússia até 1917. Mas o professor da USP, com doutorado na Inglaterra, acabou perplexo quando foi lembrado que vivíamos o início da 3a Revolução Industrial e que elas ocorriam de dois em dois ciclos Kondratieff. Na verdade, as conferências, palestras e debates dos quais Rangel participava não eram exibicionismos.
Outra característica de Rangel foi de estimular economistas recém-formados e com potencial de crescimento, como foi o caso da dupla Carlos Lessa e A. Barros de Castro, formados na UFRJ. Foram chamados a trabalhar num dos órgãos de assessoria do governo João Goulart, mas ficaram sem receber vencimentos por vários meses, de maneira suspeita, tendo sido obrigados a desistir e a suspeição recaía sobre um poderoso economista do governo.
O ISEB desempenhou um papel complementar ao ensino universitário então existente, pois dispunha de mais autonomia e liberdade. A área de Filosofia foi ocupada por Roland Corbisier, ex-integralista, e por Álvaro Vieira Pinto, nome muito respeitado, assim como a área de História foi exercida por Nelson Werneck Sodré. Todos eles intelectuais de alto prestígio, com Ignacio Rangel, responsável pela área de Economia, com diálogos frutíferos com Sodré. As ideias de feudalismo no Brasil defendidas por Ignacio Rangel acabaram ajudando N. Werneck Sodré a melhorar seus textos posteriores para surpresa dos seus admiradores. Na época do ISEB Ignacio Rangel, como já assinalamos, orientou entre outros, o estudo de Gilberto Paim sobre a gênese do mercado no Brasil, a partir da lenta dissolução da enorme economia natural existente no novo mundo rural. O ISEB também levou seus cursos às universidades, como ocorreu, por exemplo, com o convite dos estudantes da Faculdade de Direito da USP, onde as aulas de Ignacio Rangel acabaram estimulando L. G. Belluzzo a se tornar economista.
Enquanto isso, a presença de Ignacio Rangel continuou muito forte no BNDE, onde foi o principal responsável pelo Plano de Metas do Governo JK e pela chamada "correção monetária" adotada pelo governo Castelo Branco, em plena ditadura militar, esta aliás estimulada pelos EUA. Grupos econômicos brasileiros foram prejudicados, como Jafet e Votorantim; a FNM, produtora de caminhões, foi extinta etc. Roberto Campos, que havia sido o primeiro presidente do BNDE e acompanhava a produção intelectual de Ignacio Rangel, percebeu que o setor imobiliário, então bloqueado, tomaria grande impulso adotando a correção monetária. Assim, com o Banco Nacional de Habitação e a Caixa Econômica Federal corrigindo as dívidas pela inflação vigente, como também acabaram sendo corrigidos os salários, as cidades brasileiras passaram por um gigantesco processo de verticalização, inédito no mundo ocidental, com enorme crescimento econômico.
8. O novo modelo de desenvolvimento proposto por Ignacio Rangel nos anos 1980
A altura de 1980 e mesmo antes, Ignacio Rangel percebia que o modelo de crescimento por substituição de importações havia se esgotado, pois o edifício industrial se completara com a mecânica pesada e a engenharia pesada, ambas consolidadas no governo E. Geisel. Em 1978 Rangel participou dos Painéis da crise brasileira (1979) onde explicitou suas ideias sobre a crise econômica, enfatizando a questão da dívida pública e em março de 1985 divulgou sua "Carta aberta aos economistas" (Informe Corecon – RJ 3/1994) dizendo: "Dirijo-me à nação. Mas na espécie, faço-a representar-se pela categoria dos economistas. E a esta faço-a representar-se pelos chefes indiscutíveis de nossa direita e de nossa esquerda: Roberto Campos e Conceição Tavares”.
Passa a se referir à necessidade de "conversão de muitas de nossas atuais concessões de serviços públicos a empresas públicas, em concessões de serviços públicos a empresas privadas. A multinacionais inclusive, insistamos. Em última instância, é do nascimento do capitalismo finaceiro brasileiro que se trata, para criar condições propícias ao pleno uso do potencial produtivo já criado pelo capitalismo industrial".
Em entrevista à revista Senhor (30/5/1988) didatiza suas colocações: 1) só um nacionalismo se justifica: a proteção ao comércio exterior; 2) a reforma agrária não é prioritária, basta o estatuto da terra; 3) sabíamos que a estatização iria estourar o caixa, mas não já; 4) ao investir aqui, o capital estrangeiro perde sua nacionalidade; e 5) o Estado vai mudar sua função, da arca industrial para a financeira. Entretanto, nem Roberto Campos, nem M. Conceição Tavares, nem qualquer outro economista importante levaram a sério as propostas de Rangel, com exceção de Delfim Netto, que no governo Figueiredo recuperou a crise econômica pelo caminho das exportações industriais, usando câmbio favorável e a capacidade ociosa, forma de poupança conforme Rangel.
Ignacio Rangel tinha toda a razão ao sentir a falta de Jesus Soares Pereira (“O homem e sua ficha”, 1988), servidor público extraordinário, que concordaria com a ideia de investimentos maciços em ferrovias, portos, saneamentos, setores estrangulados. Roberto Campos preferia a implantação de zonas econômicas especiais portuárias e M. Conceição Tavares preferia o combate à inflação, como os economistas pró-imperialistas nacionais e internacionais.
Poucos economistas sabiam, mas Ignacio Rangel nos lembrava que de 1930 a 1980, durante meio século, o Japão, a URSS e o Brasil foram as três economias que mais cresceram no mundo, o que se tornou intolerável aos EUA. O Japão invadia o mercado norte-americano de automóveis, aço e outros produtos; a URSS, como potência geopolítica, desafiava o domínio norte-americano nos continentes, nos oceanos e na atmosfera; e o Brasil, pequena potência industrial, desafiava a presença norte-americana na América Latina e em outros lugares. O governo Reagan conseguiu impor resultados brilhantes ao forçar a supervalorização do yen, ao ameaçar a URSS com a Guerra nas Estrelas e ao impor ao Brasil o combate à inflação, resultando no plano Cruzado, que provocou um longo processo de desindustrialização, que dura até hoje.
Ignacio Rangel tinha toda a razão ao dizer nos anos 1960 que “os instrumentos do Imperialismo no Brasil eram a desfaçatez da direita, a imbecilidade das esquerdas e o déficit em conta corrente no balanço de pagamentos". A imbecilidade das esquerdas se manifestou tragicamente nas eleições de 1989, quando as esquerdas lançaram três candidatos e Lula não abriu mão de disputar o segundo turno, em favor de Covas, sugestão de Brizola. E também quando economistas da Unicamp/SP aderiram ao Plano Real proposto pelos economistas de direita da PUC/RJ, abrindo o mercado às importações predatórias que interessavam ao imperialismo, destruindo grande parte da indústria brasileira.
A desfaçatez, a imbecilidade e o déficit de pagamentos se somaram e deram vitória ao imperialismo e derrota à proposta de um novo modelo de Ignacio Rangel. Quando do seu falecimento, economistas sérios como Mário Henrique Simonsen e Antônio Delfim Netto não deixaram de homenageá-lo. O primeiro lembrou que "Ignacio Rangel foi um pensador independente, um economista dedicado, de quem se podia concordar ou discordar, mas que sempre suscitava apreciação e respeito". Assim também Delfim Netto se pronunciou: "Ignacio Rangel tinha uma característica que o distinguia: a extrema seriedade com que defendia seus pontos de vista. Um pensador de grande postura ética, um homem que estudava profundamente o tema a que se dedicava, demonstrando que respeitava seus leitores, mesmo aqueles de quem divergia. Ele tinha a virtude do equilíbrio e uma interpretação inteligente dos problemas brasileiros”.
9. As ideias de Ignacio Rangel iluminam o Brasil e o mundo de hoje
Recapitulando algumas das ideias criadas ou adotadas por Ignacio Rangel é interessante lembrar que em 1994, ano do seu falecimento, ele se entristecia com o destino do Brasil e do socialismo soviético, mas mantinha acesa a esperança, que foi uma constante na sua vida.
Sobre o socialismo, Rangel levava em alta conta a análise de Schumpeter de que o capitalismo era dinâmico quando concorrencial, mas perdia velocidade com a oligopolização, sua tendência intrínseca. O socialismo não carecia desse mal, como ficou demonstrado com o crescimento da URSS e o enorme crescimento da China a partir de 1980. Enfatizava também o papel gravitacional que a Rússia desempenhou e que a China começava a desempenhar.
Partindo dessas ideias, a autonomia que o Brasil havia perdido pela imposição do Plano Real, poderia ser recuperada por governos de centro-esquerda, como o de Lula, que o havia convidado para uma conversa frutífera em 1989. Deve-se acrescentar que a esperança aparece sempre nas imagens de Ignacio Rangel, enquanto as imagens de tantos outros intérpretes do Brasil são verdadeiras poses de artistas, fingindo profundos conhecimentos, como em C. Furtado, M. C. Tavares, R. Campos, D. Ribeiro e outros mais.
Uma das importantes ideias criadas por Ignacio Rangel foi exposta em "A inflação brasileira" de 1963. Convém lembrar que o problema da inflação reaparece no mundo capitalista, incluindo o Brasil, com muita frequência, como nos dias de hoje. Em "Economia: milagre e anti-milagre", de 1985, aparece na página 50 um gráfico antológico mostrando que nas fases de queda da produção industrial a inflação crescia e acabava descendo quando a produção industrial subia. Ignacio Rangel argumentava que os primeiros anos da década de 1930 foram de deflação, por causa da crise de 1929, mas que no final da década a inflação se manifestava claramente. Constatou que a primeira onda inflacionária se manifestou nos preços dos alimentos, pois o grande comércio atacadista oligopolizado administrava os preços, que eram elevados quando a economia perdia força. Na sequência, a inflação passou a ser administrada por cada novo setor oligopolizado, como bens de consumo industriais simples, depois os duráveis e assim sucessivamente.
Ignacio Rangel descobriu que a inflação brasileira era consequência da oligopolização, não tendo autonomia, como muitos imaginavam. Não se deve esquecer de que o Brasil, com maior ou menor inflação e com maior ou menor corrupção, cresceu gigantescamente de 1930 a 1980. Deve-se dizer que o setor reacionário da sociedade brasileira sempre tomou a inflação e a corrupção como plataforma política, como hoje em dia o Banco Central mantém juros estratosféricos a pretexto de combater a inflação, prejudicando o crescimento econômico.
Ignacio Rangel também tinha clareza sobre o problema do crescimento econômico como já foi exposto anteriormente. A poupança necessária aos investimentos dependia de três fontes possíveis: 1) o lucro das empresas; 2) os empréstimos estrangeiros; e 3) a capacidade ociosa, como ele foi o primeiro a apontar. Para crescer era necessário transferir recursos dos setores superinvestidos, com capacidade ociosa, para os setores subinvestidos, nós-de-estrangulamento como propunha nos anos 1980. Entretanto, a vitória do imperialismo com Collor e FHC levou às privatizações da Usiminas e da CSN, absolutamente desnecessárias. As privatizações viraram negociatas, e até hoje nós-de-estrangulamento como ferrovias, saneamento etc. continuam carentes de investimentos. Além disso, o Plano Real provocou enorme desindustrialização.
Nos anos 1980 Ignacio Rangel propunha um novo modelo econômico, como já disse linhas acima. A economia deveria passar por abertura de dentro para fora e não a abertura forçada pelo imperialismo. O comércio de produtos industriais, agrícolas e de serviços deveria ser ampliado com a América Latina, a África e Oriente Médio, com vantagens recíprocas, exportando automóveis, aviões da Embraer, armamentos etc., não esquecendo do agronegócio em rápida expansão, como já ocorria durante o período militar.
Outra preocupação de Ignacio Rangel era o fluxo gigantesco de migrações rurais para as cidades e a multiplicação do número de boias-frias. Desde muitos anos antes, propunha a criação de vilas rurais, com microlotes onde os boias-frias e desempregados pudessem morar, manter família, subsistir com lavouras alimentícias, com chance de vender excedentes para as cidades vizinhas. No Paraná, o governo Lerner levou a sério a proposta e ninguém mais. Diante dessa incompetência, as cidades brasileiras têm centenas de milhares de moradores de rua.
Expusemos algumas ideias luminosas de Ignacio Rangel e esperamos que o governo de centro-esquerda do Lula, com o apoio da mobilização popular e do papel gravitacional da China consigam dar um rumo progressista em nível nacional e internacional, como alguns sinais estão mostrando.
Para homenagear Ignacio Rangel, criativo e original, como nos ensinou R. Bielschowsky, vale a pena lembrar que ele, como bom nordestino, gostava de poesias e chegou mesmo a fazê-las. Gostava de lembrar os versos de Antônio Machado, espanhol exilado na França, dizendo "Caminante, no hay camino, se hace camino al andar", versos que refletem o caminho percorrido por ele mesmo, Ignacio Rangel.
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