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Privatização e plano verão

Folha de S. Paulo (27/01/1989)


Nos minutos, necessariamente poucos, que a Rede Manchete me concedeu, no passado dia 15, para comentar o discurso de lançamento do Plano Verão, do presidente Sarney, esbocei algumas objeções – que continuam válidas – mas manifestei apoio às intenções do chefe do governo de promover a privatização de uns quantos serviços públicos, ora organizados como concessões a empresas públicas, com a ressalva de que as considerava tímidas.


Errado, com maiúscula, estava o fato de pretendermos acabar com a inflação à força de recessão, de desaceleração da economia. Pontualmente, nossa inflação é máxima quando a atividade econômica é mínima, e vice-versa. Consequentemente, a inflação, juntamente com as outras manifestações da recessão – como o desemprego, a queda do salário dos trabalhadores e da demanda –, a inflação, como ia dizendo, se combate no processo de reativar a economia e, para isso, de retomada dos investimentos. Ora, nas presentes condições, não vejo como promover essa retomada sem a privatização dos serviços de utilidade pública.


Para isso, porém, faz falta urna privatização de verdade, e não esse simulacro de privatização que, segundo a proposta do presidente, deve ser feito através da venda de pacotes minoritários de ações das empresas públicas concessionárias de serviços públicos. Assim, não daríamos um passo no sentido da regeneração do instituto jurídico da garantia real, único meio de induzir a queda – note-se bem, a queda, não a elevação, como pretendem os inventores desse enésimo Plano Cruzado – da taxa de juros.


Entre parênteses: todo um elenco de problemas permanecerá em suspenso, sem solução possível, enquanto a taxa de juros permanecer nas alturas por onde paira. Problemas como esse da construção residencial, para cidades que crescem, em todo o país, ao ritmo de um terço de Grande Rio por ano. E problemas como o da fixação de tarifas que possam ser cobradas à massa de usuários dos serviços de utilidade pública.


Os juros estão altos – quando, à força de acumulação de capacidade ociosa, deveriam estar baixos, porque a eficácia marginal do capital é negativa – e estão altos porque o Estado, detentor e avalista das unidades integrantes do setor público, está falido. E toda tentativa de refinanciar o setor público através da tomada de recursos ao setor privado – onde o simples bom senso mostra estar acumulada a liquidez do sistema – não poderá resultar senão em agravamento do problema, via exacerbação da taxa de juros.


Ora, estando a economia imersa numa fase recessiva profunda e prolongada como a atual, mesmo aos 12% (reais) admitidos pela Constituição – num dispositivo que o Plano Verão abertamente viola – seriam contadas as atividades que poderíamos financiar. Para não falarmos em serviços de utilidade pública de elevadíssima razão capital-produto. Nessas condições, a retomada do desenvolvimento passa, necessariamente, pela queda da taxa de juros.


Quando, há um quartel de século, introduzimos a correção monetária, não sei que se passava pela cabeça do professor Bulhões, o pai putativo da medida. Pela minha cabeça que, havia anos, batia-me por ela, passava-se, como agora, a busca de uma solução para o problema de garantia, instituição jurídica que repercute pesadamente em toda a ordem econômica e social do sistema. A percepção do problema exige sua abordagem, simultaneamente, pelo lado econômico e pelo lado jurídico.


Com efeito, numa época em que a taxa de formação de capital da economia nacional dependia, em grandíssima parte, do que se passasse no campo da construção residencial, entre o financiador e o comprador de imóveis – suponhamos, apartamentos residenciais – estabeleciam-se relações esdrúxulas, para pouco dizer. O comprador era convidado a deixar nas mãos do vendedor,  em garantia, a hipoteca do bem transado, como é normal fazer-se em tais casos.


Entretanto, nas condições de uma lei de usura que limitava a 12% a taxa de juros, vigia uma inflação rapidamente aproximando-se dos 100%. Sem correção monetária, isso queria dizer que, entre o saldo devedor do mútuo garantido e o valor do bem dado em garantia, em pouco tempo deixava de haver a relação econômica – isto é, de preço ou valor – que o instituto jurídico pressupõe. A falta dessa relação esvaziava de sentido o instituto da hipoteca e, por falta desse sentido, a taxa de formação de capital, para manter-se, ficava na dependência de que o Tesouro interviesse onerosamente, no intuito de restabelecer a equação econômico financeira quebrada.


A instituição da correção monetária, aplicada ao saldo devedor, restabelecia, aproximadamente, a relação obrigatória entre esse saldo e o valor de mercado do bem hipotecado, liberando o Estado dos encargos que recaíam pesadamente sobre os seus ombros. E, regenerado o instituto da hipoteca, a taxa de juros deslizou para níveis suportáveis.


Mais eis que o velho problema ressurge, noutro plano. Agora, a conjuntura já não depende tanto do que possa acontecer no campo dos imóveis e dos bens duráveis de consumo, mas do que aconteça no campo dos serviços de utilidade pública, visto como aí vigem relações jurídicas peculiares, dado que, como regra geral, os bens somente podem ser alienados para o Estado ou com a participação deste.


Pura questão de bom senso, quando não de direito. Com efeito, como pode uma pessoa de direita privado receber, em hipoteca, um quilômetro de ferrovia? Como excutir essa garantia, em caso de inadimplência do devedor? Trata-se de matéria severamente disciplinada pelo capítulo do Direito Administrativo que rege as concessões. Os bens comprometidos na prestação de serviços públicos são inalienáveis “hormis le Roi", isto é, salvo para o Estado.


Na prática, isso queria dizer que, sempre que fosse mister recorrer a recursos de terceiros, para financiar os serviços de utilidade pública – e esses casos são majoritários, por várias e incontornáveis razões –, o mútuo somente poderia ser negociado pela interveniência do Estado, seja comprometendo recursos próprios, seja com recursos de terceiros, comparecendo o Tesouro como avalista e principal devedor.


A presente insolvência do Tesouro – e, consequentemente, a insuportável taxa de juros – tem esta origem, no Brasil contemporâneo. A dívida, tanto externa, como interna, tem essa história. Resulta de recursos tomados para esse fim ou da capitalização do serviço da dívida assumida.

A exemplo do que foi feito há um quartel de século ou quase, este problema deverá ser resolvido pela regeneração do instituto da hipoteca, nas condições peculiares ao direito de concessão. Por outras palavras, o concessionário deve ser privado, visto como, de outro modo, o Estado, na pessoa de empresa pública concessionária de serviço público, estaria hipotecando seus bens a si mesmo, isto é, ao Estado como poder concedente do mesmo serviço. Ora, se, como pretende o presidente Sarney, o Estado guardar a condição de sócio majoritário, essa condição não se cumpre. Continuaríamos, como agora, a girar em círculo.


Privatizado o serviço – isto é, retirando-se o Estado do quadro de acionistas da empresa concessionária, ou limitando-se à condição de sócio minoritário – o concessionário poderá legitimamente oferecer ao Estado a hipoteca dos seus bens, em troca do aval do Tesouro. Uma hipoteca válida, visto como liberta da cláusula de inalienabilidade, em troca de um aval regenerado, visto como hipotecariamente lastreada, ao passo que o lastro presente do aval concedido pelo Tesouro são recursos fiscais, uma e mais vezes comprometidos já.


Nessas condições, em caso de inadimplência, o Estado, como poder concedente, poderá tomar ao concessionário a concessão e, como credor hipotecário, poderá tomar-lhe os bens. Todo um sistema financeiro e administrativo se erguerá sobre essas bases.

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