A QUARTA DUALIDADE
- José Messias Bastos

- 5 de ago.
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Atualizado: 8 de ago.
Como lembra Ignácio Rangel, o Brasil vive desde anos setenta até hoje, uma verdadeira revolução, ou seja, a transição no pacto de poder da terceira para a quarta dualidade — um conceito central em sua análise da formação social brasileira. A teoria da dualidade possui uma notável capacidade explicativa, especialmente para compreender como o país conseguiu avançar em um processo de industrialização acelerado a partir de 1930, sem, contudo, realizar uma reforma agrária que superasse suas estruturas sociais e fundiárias tradicionais.
É nesse contexto da revolução de 1930 liderada pelo estancieiro Getúlio Vargas que surge a terceira dualidade: a aliança entre os grandes latifundiários voltados para o mercado interno - gaúcho, mineiro e do sertão nordestino- (representantes do polo interno, do setor agrário nacionalista) e a burguesia industrial (representante do polo externo moderno e urbano). Essa aliança passou a dominar a cena econômica e política do país, expressando uma tensão estrutural profunda entre o atraso agrário e o avanço industrial.
Essa contradição — desenvolver um setor industrial moderno sobre uma base agrária ainda marcada por relações feudais ou semifeudais — é exatamente o que a teoria da dualidade ajuda a desvendar. Ela revela como a formação econômica e social do Brasil se construiu sobre acordos de poder entre elites de setores opostos, mas pactuados numa união dialética e assim, por um lado impedindo mudanças radicais na democratização da terra, mas, de outro, coordenando os avanços ilimitados na industrialização.
Assim, a terceira dualidade não apenas moldou a trajetória do desenvolvimento nacional, mas também explica muitas das contradições que persistem até hoje na economia e na sociedade brasileiras.
Contudo, sua vigência analítica foi progressivamente erodida pela intensa modernização capitalista que, embora não tenha eliminado todas as assimetrias, integrou funcionalmente a economia e as relações sociais sob uma lógica predominantemente homogênea em escala nacional. Ambos os setores – industrial e agrário – transformaram-se em expressões consolidadas e plenamente articuladas do capitalismo brasileiro, submetendo-se à mesma racionalidade de acumulação, gestão tecnocrática e inserção em cadeias produtivas nacionais e internacionais.
Embora a hipótese de uma 'quarta dualidade', fundamentada em um pacto político-estratégico entre a burguesia industrial (sócio majoritário) e a burguesia agrícola capitalizada (sócio minoritário), tenha sido formulada como um projeto nacional desenvolvimentista viável e até desejável, a trajetória histórica concreta demonstra sua não materialização. A proposta não encontrou ressonância estrutural na sociedade brasileira, que enveredou por um caminho distinto, marcado pelo processo precoce e acelerado de desindustrialização. Este desvio de rota, de natureza profundamente estrutural, foi o fator determinante que inviabilizou a consolidação desse pacto, ao mesmo tempo em que subestimou a complexidade crescente dos conflitos políticos que caracterizaram o período contemporâneo.
A fragilidade revelada não foi só econômica, mas, sobretudo, política: a burguesia industrial, embora eficiente na produção de riqueza, demonstrou incapacidade histórica de gerar lideranças políticas unificadoras capazes de mediar os múltiplos interesses em choque durante a redemocratização dos anos 1980 e do neoliberalismo destrutivo da economia nacional dos anos 90. Falhou em construir um projeto hegemônico que pacificasse as tensões sociais e relançasse o desenvolvimentismo nacionalista iniciado com Getúlio Vargas em 1930, de caráter anti-imperialista. Esse vazio de direção política criou um cenário de autofagia entre as elites, abrindo espaço para a ascensão inédita de um líder sindical, Luiz Inácio Lula da Silva, adversário político declarado daquela mesma burguesia. Paradoxalmente, Lula assumiu – aos trancos e barrancos – o papel de grande indutor da indústria nacional durante seus governos, ainda que sem o reconhecimento político das elites econômicas que o combatiam.
A superação teórica do modelo dualista, contudo, jamais extirpou seus resíduos culturais mais profundos, cimentados nas engrenagens das instituições políticas e nas práticas seculares de poder brasileiras. Foi sobre esse substrato estrutural vulnerável que o imperialismo financeiro estadunidense operou com calculada astúcia. Identificando a fragilidade endêmica e a permeabilidade ideológica das forças políticas nacionais – indistintamente à esquerda e à direita –, aproveitou-se estrategicamente do caos sistêmico deflagrado pela crise da dívida externa dos anos 1980. Nesse terreno fértil para a desnacionalização, o nascente capitalismo financeiro brasileiro, em vez de constituir-se como alavanca de desenvolvimento soberano, foi progressivamente cooptado e subordinado aos circuitos especulativos globais.
O Banco Central do Brasil emergiu como ator pivô nessa arquitetura de dependência, institucionalizando por décadas uma política monetária de juros reais estratosféricos – persistentemente entre os mais elevados do planeta. Essa opção configurou um boicote estrutural deliberado ao desenvolvimento produtivo: ao estrangular o crédito para investimentos de longo prazo em infraestrutura crítica e inovação industrial, condenou o país à estagnação competitiva em inúmeros ramos do setor industrial. O complemento fatal foi a política cambial, cristalizada com o Plano Real numa sobrevalorização crônica da moeda. Esta não apenas incentivou importações predatórias de bens manufaturados e desmontou cadeias produtivas domésticas, como também penalizou fatalmente as exportações de maior valor agregado.
O resultado foi a primazia absoluta da rentabilidade financeira de curto prazo, em detrimento de qualquer projeto nacional de redução dos custos logísticos sistêmicos, elevação da produtividade industrial e construção de uma economia integrada e diversificada. O legado perverso é uma economia desarticulada, refém da volatilidade financeira global e estruturalmente incapaz nesta conjuntura de gerar desenvolvimento endógeno e sustentável.
O agronegócio, por sua vez, trilhou um caminho diametralmente oposto. Ancorado em um modelo singular de apoio estatal, o setor viu sua competitividade internacional ser construída mediante investimentos maciços e contínuos. A pesquisa de ponta da EMBRAPA – vital para os ganhos de produtividade – e, sobretudo, os generosos subsídios creditícios dos Planos Safra, financiados pelo Tesouro Nacional ano após ano, funcionaram como um poderoso escudo protetor. Essa blindagem permitiu a consolidação de um complexo agroexportador pujante, porém lastreado em pesados e contínuos recursos públicos, que transferiram para a sociedade parte dos custos de sua eficiência privada.
Essa disparidade gritante de tratamento revela, na prática, a persistência de um dualismo operacional no coração das políticas de Estado brasileiras. Enquanto a indústria de transformação foi progressivamente asfixiada pelo 'custo Brasil' – agravado exponencialmente pelos juros reais estratosféricos e pela política cambial crônica e desfavorável –, o complexo agroexportador desfrutou de um ambiente privilegiado: crédito abundante, barato e direcionado, infraestrutura logística (ainda que deficitária) priorizada em corredores de exportação, e benefícios fiscais seletivos.
Tal distorção estrutural não deriva de nenhuma 'arcaicidade' inerente ao campo – ideia amplamente desmentida pela modernização tecnológica do agronegócio –, mas sim de uma opção política deliberada e perversa. Ela favorece sistematicamente segmentos econômicos dotados de extraordinário poder de lobby e de inserção direta nos circuitos globais de commodities, cuja rentabilidade imediata e divisas geradas conferem influência desproporcional nas arenas decisórias. Assim, longe de superar as clivagens históricas, o Estado brasileiro replica e moderniza antigas assimetrias, vestindo-as com as novas roupagens da financeirização e no neoliberalismo perverso.
Dessa forma, o lado perverso da mentalidade dualista sobreviveu nos anos 90, não como teoria explicativa, mas como prática institucional fragmentária. Escancarando as portas para a implementação das nocivas políticas neoliberais, essa mentalidade dualista às avessas se manifestou na incapacidade crônica de formular um projeto nacional integrado que supere o rentismo financeiro e a subordinação as commodities. Tal fenômeno demonstra que as bases culturais do dualismo invertido – agora adaptadas ao “capitalismo moderno alienado” – continuam a obstaculizar a construção de um desenvolvimento verdadeiramente soberano, equilibrado econômica e socialmente.
O exposto acima materializa-se de forma cristalina em dados recentes da CNI (Confederação Nacional da Indústria): O gráfico abaixo mostra o colapso vertiginoso da participação da indústria no PIB brasileiro, que recuou de 48% em 1985 para 24,7% em 2024. A primeira queda acentuada ocorreu durante o governo Collor (1990-1992), quando o peso setorial desabou para 36,2%. Seguiu-se uma breve recuperação, atingindo 41,6% no início do Plano Real (1994). Entre 1994 e 2003 (governo FHC), verificou-se uma nova – e mais intensa – queda: a participação da indústria (medida pelo valor adicionado industrial a preços correntes em relação ao total da economia) manteve-se sistematicamente abaixo de 27%. Este período coincidiu com a política de juros escorchantes e a sobrevalorização cambial crônica do Real, marcada pela ancoragem cambial fixa (1:1 com o dólar). Sob o governo Lula (2003-2010), houve uma recuperação tímida, porém prolongada, interrompida por novo estrangulamento durante o governo Dilma (2011-2016) – quando o indicador atingiu seu piso histórico, em torno de 21%.

No atual governo Lula, observa-se uma retomada econômica expressiva, com crescimento do PIB mantendo-se consistentemente acima de 3% ao ano – desempenho significativo no cenário pós-pandêmico e de restrições fiscais. Paralelamente, o país transformou-se num vasto canteiro de obras estratégicas, especialmente em infraestrutura logística e energética. Esse dinamismo deve-se, em grande medida, a um novo modelo de financiamento: investimentos majoritariamente privados, viabilizados pela criação de marcos regulatórios robustos (como os do saneamento, gás e ferrovias) que conferiram segurança jurídica e atratividade às concessões.
Essa sinergia entre Estado indutor e capital privado opera em duas frentes: Redução do Risco País: 1) Normas claras e agências reguladoras fortalecidas mitigam a histórica insegurança dos investidores. 2) Superação de Crônicos Déficits: Atrai recursos para setores tradicionalmente negligenciados, cujo estrangulamento onera a produção industrial ('Custo Brasil').
Contudo, persistem desafios estruturais críticos: a participação industrial no PIB permanece estagnada em patamares historicamente baixos (24,7% em 2024); o modelo ainda não conseguiu reverter primarização da pauta exportadora; e a política monetária segue tensionada entre juros reais elevados – justificados pelo discurso hegemônico de controle inflacionário, porém questionáveis em sua eficácia redistributiva – e a necessidade de crédito acessível para reinvestimento produtivo.
O êxito de longo prazo, portanto, dependerá intrinsecamente da capacidade de ampliar e criar recursos financeiros internos e assim transformar esse ciclo de investimentos em infraestrutura e, portanto, em ganhos sistêmicos de produtividade e complexidade econômica, reduzindo assim as vulnerabilidades interna e externa.



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