Febre alta na economia brasileira
- Ignacio Rangel
- 31 de mar. de 1989
- 3 min de leitura
Folha de S. Paulo (31/03/1989)
Segundo informa a imprensa, o presidente Sarney espantou-se com a estimativa oficial de inflação para o mês de março – 6,5% – e ficou propenso a mandar recalculá-la. Ao primeiro exame, temos uma reedição da velha piada de mandar quebrar ou substituir o termômetro responsável pela indicação de uma febre mais alta do que seria de desejar... se é que alguma febre deve ser desejada.
Mas há outras coisas a observar, a começar pela razoável suspeita de que uma revisão séria dos cálculos levaria a uma taxa de inflação maior do que a indicada. Muito diferentemente do que aconteceu quando do Plano Cruzado, a opinião pública, desta vez, desinteressou-se claramente da enésima experiência de congelamento. Dizia Karl Marx que, quando uma ideia se apossa da imaginação das massas populares, converte-se numa força material, precisamente o que não aconteceu agora, isto é, desta vez, nem essa precária materialização da ideia do congelamento, a tivemos.
Resulta que violações óbvias do congelamento são praticadas aos olhos de todos, sem que ninguém tome interesse maior pelo assunto. Nessas condições, seria de espantar, isso sim, que os deflatores oficiais tivessem uma representatividade mínima. Os "fiscais do Sarney" – especialmente as "fiscalas" do dito – fazem-se notar por sua óbvia ausência.
Mas não está aí, ainda, o problema capital. A inflação é como uma febre, que o deflator registra com precisão maior ou menor. Mas não é a doença. Assim como a mesma febre pode ser sintoma de várias doenças, a inflação pode também refletir este ou aquele desarranjo da economia e, assim como a temperatura da febre pouco nos pode dizer sobre a doença que se manifesta através dela, a inflação não basta para precisar do tipo de crise econômica subjacente a ela. Se bastasse um termômetro para diagnosticar uma doença e um deflator razoavelmente preciso para determinar a natureza e a violência da crise econômica subjacente, nem a ciência médica nem a ciência econômica nos faria muita falta.
Essas ciências são necessárias, em seus respectivos campos, precisamente porque a essência e a superfície dos fenômenos se relacionam de maneira complexa, suscetíveis de enganar-nos.
Por exemplo, os teóricos dos nossos planos de estabilização costumam postular que a intensidade da inflação mede a intensidade da demanda efetiva do sistema econômico. Não é outro o motivo pelo qual postulam também a necessidade de um arrocho salarial, como peça de resistência do programa de medidas orientado para a compreensão da demanda efetiva. Nem sequer lhes passa pela cabeça: 1) que a inflação não é a doença de que padece o sistema; 2) que, mesmo que o fosse, não se relaciona diretamente com a demanda.
Com efeito, há muito tempo que Ignácio Rangel vem demonstrando pacientemente que é precisamente nos períodos de demanda efetiva máxima – isto é, nos períodos de alta conjuntura – que as taxas de inflação são mínimas. E vice-versa, muito regularmente. Ora, por muito humilde que seja a posição desse economista no quadro do pensamento econômico nacional, outros economistas, que não escrevem em português – que, como se sabe, não é língua de ciência – mas em inglês, descobriram que, pelo menos em certos casos, a inflação pode coincidir com a recessão. E cunharam um termo para dizê-lo: “stagnation”. Isto é, uma combinação de estagnação, a forma mais aguda de recessão, com inflação,
É possível que esse comportamento de nossa economia – esdrúxulo, ao primeiro exame – tenha muito que ver com a estrutura oligopólica do nosso mercado. Isto é, que seria difícil de conciliá-lo com uma competição perfeita. Efetivamente, os oligopólios-oligopsônios – capazes de comportar-se como se monopólios-monopsônios fossem – podem, na ausência de oportunidades de investimento, limitar as próprias ofertas e procura. E fazê-lo de tal forma que, não obstante o típico estreitamento da demanda dos períodos de estagnação ou recessão, a oferta se encolheria ainda mais. Em termos relativos, portanto, tudo se passa como se houvesse um estreitamento, não da demanda, mas da oferta.
São assuntos que já não seria nem tempo que nossas universidades se pusessem a discutir, como venho sugerindo que o façam. Mas os homens responsáveis por nossa política econômica – a começar pelo presidente da República – não podem esperar que esse debate chegue ao seu termo qualquer que seja a razão pela qual nossa economia se comporta assim, é certo que se comporta, e isso é coisa que se pode demonstrar com a ajuda de um simples estagiário. Pelo menos para os últimos 30 ou 40 anos, as séries relativas ao comportamento dos preços e do produto real são conhecidas.
Resumindo a experiência acumulada nesse período, podemos dizer sem medo de errar, que nada há de mais inflacionário, no Brasil, do que a recessão. Consequentemente, mesmo que dediquemos à inflação – um mero epifenômeno – a descabida e exclusiva atenção habitual, é tempo de que cuidemos do que se passa no campo do comportamento do produto real.
コメント