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O ardil do conceito

Folha de S. Paulo (29/11/1989)


Magistralmente definiu Hegel, sob esta rubrica, um vício de lógica muito comum: tomar a coisa pelo aspecto em que ela, aparentemente, não muda. Com efeito, já ensinavam os mestres gregos que tudo passa, tudo flui, a ponto de não ser possível atravessar duas vezes o mesmo rio, porque, da segunda vez, este não será o mesmo, não obstante, aparentemente, não haver mudado.


Quando essa crise, enfim, houver passado – porque é certo que passará – veremos que a sociedade e a economia brasileiras terão, ao lado de um setor público, um setor privado. Como agora, e como no passado, tanto recente, como recuado. Noutros termos, visto sob esse ângulo, nada terá mudado, mas é claro que, se nos limitarmos a esse aspecto do problema, teremos caído, nada menos, do que no ardil do conceito.


Sim, porque deve ficar claro, desde já, que nem o setor público, nem o setor privado, serão os mesmos. Terá havido, entre os dois, uma redistribuição de funções, o que quer dizer que a economia e a sociedade brasileiras serão outras.


Perdoe-me o leitor por essa breve digressão filosófica. Ela vem muito a pelo. à vista da polêmica que se está abrindo entre os colloridos e os luistas. Ao primeiro exame, os primeiros serão privatistas, isto é, pelo menos, querem restringir drasticamente o setor público ou estatal. Os segundos, ao contrário, dão-nos, por vezes, a impressão de que pretendem, pela extrapolação do estatismo, chegar ao socialismo. O meio dourado seria deixarmos as coisas como estão. Ora, as coisas não podem ficar como estão, porque a sociedade e a economia são organismos vivos, em constante mudança. E pode acontecer que amanhã os pesos relativos dos dois setores sejam os mesmos, o que não quereria dizer que as coisas não teriam mudado.


Permiti-me lembrar um exemplo ainda na memória de quase todos. Ao se abrirem os anos 50, sob a batuta do segundo governo Vargas, o Brasil vivia uma crise tão violenta que levou ao suicídio do presidente. Essa crise era um fenômeno muito complexo, mas podíamos distinguir certos fatos marcantes. Por um lado, a indústria automobilística – indispensável ao desenvolvimento do país, naquelas circunstâncias – estava, organizada como empresa pública, a Fábrica Nacional de Motores.

Por outro, a produção de energia elétrica estava, no fundamental, entregue à Light e outras empresas privadas, nacionais e estrangeiras.


Ora, quando a crise passou, a indústria automobilística tinha sido reorganizada como empreendimento privado, enquanto a produção e distribuição de eletricidade haviam passado à responsabilidade do Estado. Com brilhantes resultados, em ambos os casos.


Em suma, a economia somara-se diferente, muito diferente, mas a verdade é que o setor privado havia perdido posições e ganho outras. O mesmo acontecendo com o setor público. Ao primeiro exame, seria difícil dizer qual dos dois setores ganhou peso e qual perdeu, mas, mesmo ao primeiro exame, era claro que a economia brasileira, por força dessa permuta, tornara-se muito diferente. E muito melhor.


De minha parte, não caí no ardil do conceito. Sob o comando de Rômulo Almeida e Soares Pereira, fui estatista, ao pugnar pela Eletrobrás; mas, sob o comando de Lúcio Meira, fui privatista, ao trabalhar pela implantação da moderna indústria automobilística brasileira, tão diferente daquela simbolizada pela Fábrica Nacional de Motores que, como dizia Soares Pereira, nem era fábrica, nem nacional, nem de motores. A exemplo da sociedade brasileira, guiada por seus próprios instintos, fui, ao mesmo tempo, estatista e privatista.


Seria bom que os assessores de Collor e Lula meditassem um pouco nessa lição de nossa história recente. Até para não termos que repeti-la dolorosamente.


O que importa é saber que atividades devem ser privatizadas agora e que outras estatizadas. Com o tempo, nova redistribui-ção das atividades integrantes do organismo econômico entre os setores público e privado, entrará na ordem do dia e, através dessas sucessivas redistribuições, a economia se irá desenvolvendo, vencendo uma etapa após outra.


O advento do capitalismo financeiro brasileiro está a exigir uma dessas redistribuições de atividades.

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