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O pensamento de Ignacio Rangel

Atualizado: 14 de fev.

Conferência apresentada por Milton Santos no "Seminário Ignacio Rangel e a Conjuntura Econômica" no anfiteatro de Geografia da USP.


Senhoras e senhores, estou muito feliz por estar aqui para falar sobre Ignacio Rangel. Quero agradecer a Armen pela gentileza do convite e pedir desculpas, pois minha exposição será mais uma conversa baseada em algumas notas que tomei, refletindo sobre o que Rangel escreveu e sobre o tempo em que ele viveu.


Quando somos chamados para falar sobre uma personalidade, surgem várias dificuldades, especialmente quando nos dirigimos a uma audiência jovem, que ouvirá sobre uma figura histórica que, embora importante, já não está mais presente. Isso significa que a tarefa envolve, antes de tudo, resgatar essa personalidade dentro de seu contexto temporal, revisitar sua época, entender as questões que marcavam sua geração e refletir sobre aspectos que, talvez, não se manifestariam nela caso tivesse vivido em um período diferente.


A época que marca essencialmente o trabalho de Rangel guarda muitas semelhanças com a que vivemos hoje no Brasil. Era uma época em que se buscavam caminhos para o país, com diversas opções sendo apresentadas. Havia o que escolher, algumas alternativas orientadas por correntes filosófico-ideológicas e outras pelas diretrizes do aparelho de Estado. Era também um tempo em que a relação do Brasil com o exterior – ainda com termos como "imperialismo" em circulação – era debatida de forma intensa. Além disso, destacavam-se as fortes disparidades regionais e de classe, questões que interessavam tanto ao aparelho público quanto aos intelectuais da época.


Talvez a principal diferença entre aquele período e o atual seja o contexto de comunicação. Naquela época, a mídia, ainda que longe de ser perfeita, oferecia um espaço mais amplo para a diversidade de opiniões, permitindo um debate público muito mais fecundo. Hoje, as empresas de comunicação se configuram de maneira muito diferente, com um grau de fragilidade que pode restringir o pluralismo das discussões.


Naquele tempo, o Brasil possuía um grande número de intelectuais comprometidos com o futuro do país, dispostos a se expor publicamente, ao contrário de muitos intelectuais contemporâneos que, diante de questões complexas e urgentes, preferem o silêncio. Rangel teve a sorte de viver em uma época de turbulências e grandes debates, uma época em que pessoas de diferentes idades e formações compartilhavam um espaço comum de reflexão e ação. No caso de Rangel, ele era parte desse movimento, com uma visão crítica e inovadora sobre o Brasil de sua época.


Em minha experiência, vejo Rangel como alguém que, além de suas brilhantes análises econômicas e sociais, contribuiu para a fundação do planejamento no Brasil, sendo um dos responsáveis por levar essa prática a um nível mais elevado. Esse compromisso com o novo e com a transformação social, sempre voltado para a busca do melhor para o país, o tornou um ícone intelectual.


Para ilustrar sua personalidade, quero compartilhar algumas anedotas. Uma delas diz respeito à maneira como Rangel percebia a hegemonia dos engenheiros na administração pública e nos processos decisórios. Essa crítica me remete a uma velha rivalidade, que por algum tempo opôs geógrafos e economistas, no que se refere à predominância da visão econômica nas decisões políticas.

Outro aspecto marcante da personalidade de Rangel era sua famosa frase sobre a política: "as esquerdas pensam, escrevem, falam, debatem sobre certos temas, mas é a direita que realiza o que as esquerdas propõem". Ele apontava que, enquanto as esquerdas se empenhavam em mobilizar a opinião pública sobre diversos temas, a concretização dessas propostas era muitas vezes realizada por grupos conservadores.

Rangel também demonstrou um compromisso profundo com o trabalho intelectual. Recusou aumentos salariais para dedicar mais tempo ao estudo, uma prática rara hoje em dia, mas representativa de uma geração que via no saber o caminho para a realização pessoal e social.

Além disso, ele expressava a queixa comum aos intelectuais periféricos, a que ele chamava de "conspiração do silêncio". Em uma época em que os especialistas sobre certos temas muitas vezes silenciavam o trabalho sério dos outros, Rangel se sentiu alvo dessa invisibilidade, algo que, nos dias de hoje, parece ser ainda mais presente, quando a queixa se torna quase inaceitável.


Rangel não era um acadêmico, não era um homem da faculdade, daí resulta, de um lado, uma certa perda de visibilidade de seu trabalho. Nós todos sabemos que a universidade permite a organização de círculos, de circuitos, de grupos que, antigamente, eram locais que se tornaram nacionais e hoje são internacionais, grupos que se incumbem de difundir o que pensam este ou aquele membro do grupo, ainda que o que eles pensem não tenha nenhuma relevância. Quer dizer, a universidade é também a fábrica de degustações não vencidas, mas, ao mesmo tempo, ela permite uma certa circulação das ideias que, nessas universidades, se gestam.


Rangel não tinha essa extraordinária alavanca, que não era tão forte naquele tempo como hoje, essa produção de reputações de medíocres, da qual estamos cheios (cheios nos dois sentidos). Ele tinha a vantagem do não acadêmico. Quais são essas vantagens do não acadêmico? A primeira delas é escapar do gastrointestinal. A universidade convoca boa parte de sua população a atividades gastrointestinais, que são atividades com o objetivo de proporcionar aumento de salários, a promoção de um lugar para o outro. Então, você se senta e escreve qualquer coisa, porque os concursos passaram a ser quase que apenas algo gestual, sem significado acadêmico. Os concursos, as formas de passagem de uma situação para outra, de tal maneira que o que sai da atividade acadêmica não é acadêmico, mas gastrointestinal, porque ajuda a melhorar as condições da alimentação de cada um, com a posição correspondente gastrointestinal. Então, aqueles que não pertencem a esse círculo — que era o caso do Rangel — ficavam na obrigação de uma posição mais corporificada, mais inteligente, mais útil, mais rica, mais duradoura, que os trabalhos gastrointestinal têm uma função imediata e acabam antes dos autores. O formidável é que o trabalho sobreviva aos autores.


Ele escapou ao gastrointestinal e também escapou ao disciplinar. Um dos grandes problemas também da vida acadêmica é a subordinação à disciplina, pois somos julgados pelos nossos pares e, para obter o julgamento desejável, somos pressionados por uma linguagem que é a linguagem do passado e se impõe sobre o presente como forma quase única de expressão aceitável e de expressão susceptível de circular. Então, aquele que não é acadêmico, ele não tem essa amarra do disciplinar, e, através do interdisciplinar — que não é uma fabricação da faculdade, mas que é um resultado da contemplação da realidade — ele descobre as coisas. Pois as descobertas acadêmicas e intelectuais se dão nos limites, nas bordas, e cada vez menos no núcleo das disciplinas. Ele também, como não acadêmico, escapa à linguagem da faculdade, o famoso facultês, que somente leem os examinadores e os membros das comissões de julgamento. E esse facultês que glorifica essa meia dúzia de pessoas que o conhecem, mas que não passam os limites da faculdade. Um dos grandes problemas da universidade é estar ou não ligado à sociedade: é a questão de que nós escrevemos uma língua que nada ou quase nada tem a ver com a sociedade na qual estamos vivendo.


Curiosamente, Rangel também escapou ao estilo das agências. Sabemos que há pelo menos dois estilos de quem faz pesquisa na nossa área de ciências humanas aplicadas: o estilo da faculdade e o estilo das agências. As agências, quer as Nações Unidas, quer os órgãos regionais, nacionais e estaduais de planejamento, que produzem aquelas coisas terríveis que servem como base para planos de desenvolvimento. Quais eram os temas de predileção de Ignacio Rangel? Uma boa parte dos aqui presentes são estudantes de Armen Mamigonian. Eu poderia passar de indicar aos temas que interessavam a Ignacio Rangel, mas vou me referir a alguns deles, por exemplo, a inflação, que era algo que ele gostava imensamente de trabalhar. É curioso que os temas que Rangel trabalha desde os anos 40 são temas que atravessam a história do Brasil, que guardam sua atualidade, apesar das mudanças dos tempos. Então, a inflação interessava a Rangel.


Outro tema que lhe interessava muito era uma expressão que não sei se vocês já ouviram: reserva de mercado. Outro tema que ele trabalhava muito era a chamada capacidade ociosa, que imagino que vocês saibam do que se trata. E um outro tema que ele privilegiava era a questão do processo político. Quando encontrava Rangel diante de uma crise na economia ou na política, ele costumava dizer: "Deixemos fazer-se o processo."


A inflação o interessava, pois ele imaginava a inflação como uma solução para países subdesenvolvidos. Então, não se chamavam de emergentes, ninguém tinha vergonha de dizer o que eram. Ele dizia que esses países, não tendo como controlar de maneira eficaz a expansão ou retração de sua capacidade ociosa, a inflação aparecia como a forma de restabelecer o equilíbrio interno dessa economia, assegurando uma modalidade de preço que não desencorajava os produtores, até que uma nova vaga se desse. Ele fazia, por conseguinte, uma relação entre essa noção de capacidade ociosa e essa noção de inflação. (A capacidade ociosa se dá quando o país ou região não tem condições para fazer funcionar plenamente as indústrias que dispõe e aparece, então, que o estoque de capital fixo presente é maior que o produto obtido produzido). Então, esse fenômeno de capacidade ociosa, capacidade não utilizada, levaria a uma queda no preço e, eventualmente, a um desencorajamento do processo de desenvolvimento daquela região, se uma certa proporção de inflação não viesse criar esse equilíbrio.


Um outro tema com o qual Rangel se preocupou é a questão da relação entre o processo político e a história da economia. Eu prefiro simplificar assim: as teses sobre as dualidades, elas produzem ao mesmo tempo o germe do novo processo político, da possibilidade desse processo político, que Rangel estudava a partir do conhecimento da história do país como um todo e das regiões.


Rangel teve parceiros em todo o Brasil, notadamente no seu estado natal, no Maranhão, depois na Bahia, no Rio de Janeiro, onde viveu o essencial de sua vida, e em São Paulo, essencialmente na Universidade de Campinas. Na Bahia, ele ajudou a criar o Instituto de Economia e Finanças, que foi o embrião da ideia de planejamento regional, não apenas na Bahia, mas no Brasil. Esse instituto teve também como colaborador alguém que depois se tornaria um grande economista regional e, quando mais velho, um grande filósofo do espaço regional, John Friedmann, que, jovem, veio à Bahia treinar pessoas mais jovens que ele. E somente depois ficamos sabendo que ele trabalhava para o serviço secreto norte-americano, o que não era tão incomum entre professores que se dedicavam a questões territoriais. Mas lá estava Rangel, que, não sendo um grande conferencista (ou talvez fosse um grande conferencista, mas não era um grande orador, já que sua voz diminuía em cada frase que falava — quase como nossos telefones atualmente), era realmente grande nas conversas com grupos.


Ainda ontem, para me lembrar dos episódios de Rangel na Bahia, conversei por telefone com um dos que constituíam, então, seu entorno e me disse que a grande influência que ele tinha era nas conversas que ele tinha em petit comité com as pessoas que se aproximavam, coisa que ele repetiu em Campinas com grandes nomes da economia como João Manuel, Wilson Cano, Sérgio Silva, mas também com Maria da Conceição Tavares. Aquele ensinar ele era chamado, contratado para se instalar (a verdade em Campinas é que havia uma grande plasticidade e havia a possibilidade de trazer um sujeito que não era doutor, coisas que outras universidades têm dificuldade para aceitar, que não era doutor e não era professor de coisa nenhuma) e que vinha se sentar e falar com quem quisesse falar. E havia gente interessada em falar, e vinha gente falar com ele e saía abastecida de ideias, ideias que esse grupo difundiu com grande força e catedraticamente por todo o país.


Rangel também teve outros parceiros antes disso, naquela fase de grande efervescência da inteligência nacional nos fins dos anos 50 e começo dos 60, através do ISEB no Rio de Janeiro, onde um grupo heterogêneo, cuja única centralidade era uma grande preocupação com o Brasil, naquele momento em busca de caminhos como nós estamos agora. Só que agora, estudamos um pouco menos do que devemos. Ele, juntamente com pessoas como Hélio Jaguaribe, mas também Roberto Campos, que fazia parte do ISEB, e com aquele que era seu debatedor predileto, com quem ele gostava de brigar (passou a vida inteira brigando, brigou com ele até a morte de forma extremamente carinhosa): Guerreiro Ramos, o conhecido Guerreirão, o grande sociólogo, mestre de grandes gerações, e com o qual ele debatia de maneira franca e saudável a respeito dos grandes temas do Brasil.


Rangel também, entre os seus parceiros, teve gente como Rômulo Almeida, um grande planificador, que, todavia, escrevia pouco, o fundador do planejamento regional no Brasil e que também foi aquele que ajudou o presidente Vargas, no primeiro momento, a criar as grandes instituições que formaram o Brasil moderno. Ignacio Rangel era o grande formulador, era a pessoa que era chamada para dizer não apenas quais eram as ideias centrais a serem tomadas, mas a forma de fazê-las vingar, coisa que é cada vez mais rara hoje. A presença, em uma só pessoa, dessas duas qualidades: a de pensar uma nação perante o mundo e a de apontar as formas de realização prática desse pensamento.


É assim que Rangel ajuda na criação da Eletrobrás, estaria hoje certamente muito triste com esse processo de desmantelo da estrutura criada para que o país se modernizasse. Coisas como a Eletrobrás, como a Petrobrás e o próprio Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, o qual ele foi diretor de planejamento durante muitos anos. Então, esse Brasil moderno que nós conhecemos, esse Brasil estruturado para ser uma grande nação, com respeito ao território, com respeito à sociedade como um todo, é, em grande parte, uma obra de Ignacio Rangel.


Ignacio Rangel era uma pessoa extremamente preocupada com o tempo, não o tempo como é visto por uma boa parte dos economistas que trabalham com facções de tempo que coincidem com a visão da contabilidade. Para Rangel, esse tempo da contabilidade era indispensável de ser levado em conta, mas o que o preocupava era o tempo como formulado pela história, e é por isso que eu creio que a grande dívida que a história e a economia, como disciplinas, têm com Rangel é talvez essa ideia de tempo, que na sua cabeça não era algo abstrato, mas que tinha relação com a forma como as situações no país se sucediam e como iam se suceder, o que ele imaginava através da sua teoria, que vocês também conhecem bem, pois Armem certamente os ensinou, que é essa dualidade básica, que não é bem uma versão cabocla dos ciclos de Kondratieff.


É isso e mais outra coisa, porque tem fundamento na história do Brasil. É a partir dessa ideia de história como tempo de um povo que ele vai ser o principal artífice do programa de metas do presidente Juscelino Kubitschek. O presidente Juscelino tinha uma ideia de desenvolvimento; não vou discutir outros aspectos do governo Kubitschek, mas ele, Juscelino, aceitou a proposição de gente como Rangel e Jesus Pereira no sentido de produzir esse programa de metas, o conjunto de medidas, entre as quais aquela que levaria à formação da indústria automobilística no Brasil e que constitui, depois de Getúlio, um outro embasamento para a economia moderna do Brasil.


E foi a partir dessa ideia de tempo que Rangel escreveu talvez o seu mais importante livro, A Economia do Projetamento. Por que o seu mais importante livro? Porque nesse livro ele, a partir de postulações filosóficas retiradas dos clássicos como Aristóteles e outros, consegue trazer para o conhecimento mais amplo temas espinhosos da economia, consegue gradativamente introduzir o seu leitor nessas questões difíceis, delicadas e intrincadas da economia, e tudo isso numa linguagem raramente atingida pelos economistas e, como nós sabemos, raramente são alfabetizados. O Ignacio Rangel, por conseguinte, ele parte dessa noção de tempo, o projeto sendo exatamente (nós voltaremos a isso mais adiante) a forma como, a partir de uma meta a atingir, se estabelecem os caminhos.


Eu diria que os fundamentos da obra de Rangel, não só essa, mas de outras, são, de um lado, a técnica, de outro, a história, tal como vimos, e a filosofia. Rangel tinha uma excelente formação filosófica que ele adquiriu em sua cidade natal, São Luís, que é a segunda cidade mais culta do Brasil (depois de Salvador, como todo mundo sabe), desde o ginásio. O que acontecia com as pessoas da sua geração era que a filosofia era uma disciplina absolutamente essencial.


Desse conhecimento da filosofia veio para Rangel esse gosto pelos conceitos, o prazer que ele tinha no tratamento de ideias abstratas. Ao mesmo tempo, ele tinha gosto pelas ideias abstratas e estava sempre preso ao concreto da história. Uma dessas ideias que ele traz, que desenvolve com muita força e beleza, é essa ideia de utilidade, coisa que todos nós tivemos dificuldade em saber o que é. Imagino que os senhores também tenham, e lhes aconselharia a buscar na obra de Rangel um caminho, uma solução a esse tão difícil problema de saber o que é a utilidade. Para ele, a utilidade das coisas é a relação entre essas coisas e a sociedade, de modo que a noção de riqueza, segundo Rangel, aparece como utilidade perante a sociedade humana.


Isso é o que se vê: qual é o viés político-ideológico de Rangel? A utilidade sendo considerada como referência da sociedade humana, e isso também dá a noção de como ele encara a economia, inclusive a própria noção de custo-benefício que atravessa a economia clássica. Essa noção, para ele, era aferente a essa ideia de utilidade, e o projetamento era a forma de ir dessa realidade dos custos, projetada, à realidade dos benefícios projetados, de modo que o projetamento dos custos e benefícios, esse caminho, podia ou não conduzir a essa preocupação social. Ele insistia também no fato de que cada projeto altera a utilidade dos fatores, quer dizer, que um conjunto de fatores e que cada fator tem seu valor mudado em função do projeto em que esses fatores se relacionam.


Uma outra ideia que está nos primeiros trabalhos de Rangel e que vamos depois encontrar fora do Brasil em autores como Perroux, também foi um dos propugnadores dessa ideia de desequilíbrio, mas não havia precedência de Perroux em relação a Rangel. Eu me lembro, em uma banca de docência na faculdade de arquitetura, de ter lido no texto em que foi proposto como tese uma frase em que se citava Rangel, de 1951, e Richard Sorj, de 1970, e o candidato a livre-docente dizia que Rangel se apoiava no Richard, o que era um vício, aliás, muito comum entre nós ainda, de não admitir que um de nós possa pensar o que quer que seja antes que um europeu tenha pensado. Eu trago essa anedota porque são coisas assim que são fundamentais para o processo educativo dos estudantes, essa vontade de crer que é possível produzir coisas inteligentes também dentro do país.


Recebi essa semana, por exemplo, um convite de uma instituição muito importante no mundo intelectual brasileiro, onde me chamam para trabalhar sobre questões como interdisciplinaridade, mas vem tudo pronto, é uma espécie de pacote fabricado por funcionários da Unesco, onde tudo está lá delineado de tal maneira que eu nem sei o que tenho que fazer, e eu não sei por que a universidade aceita participar de uma coisa dessas, porque me parece algo que aceitar significa admitir que as universidades não têm como pensar por elas próprias os grandes problemas.


Pois bem, Ignacio Rangel era um pioneiro em termos globais de uma enorme quantidade de coisas, e como é normal, ele foi acusado também de ser eclético. Há entre os críticos de Rangel de então essa acusação de ecletismo, que era (e é) uma forma de desqualificação do debate, e que era admissível num momento em que o peso do marxismo soviético era tão grande dentro da inteligência, de modo que o marxismo soviético se caracterizava por uma aceitação quase cega dos postulados e não pela criação de conceitos novos; qualquer conceito novo é misto, por conseguinte, o autor de qualquer novidade é eclético. Não há novidade que não seja produto de ecletismo. Essa crítica feita a Rangel, finalmente, ela cai exatamente pela força com que ele propunha novas coisas.


Rangel fez também alguma incursão sobre o que então se chamaria de geografia, incursão que verificamos a posteriori, porque Rangel descobre sua identificação com geógrafos muito recentemente. Eu não sei qual foi o papel que teve Armem Mamigonian nessa quase conversão do Rangel à geografia, tal como nos pretendemos fazê-la, mas, na verdade, desde muito tempo ele se preocupava com questões que chamaríamos de espaço ou geográficas. Uma delas é quando ele discute o que os economistas chamam de oportunidade de investimento. Não sei se os senhores andaram lendo clássicos ou manuais de economia regional, sejam brasileiros ou internacionais, o que esses senhores, a maior parte dos economistas regionais, consideram como espaço não é bem o espaço que nos preocupa, que o nosso espaço é o espaço de todos, enquanto que os economistas regionais estão preocupados com oportunidade de investimentos.


Ora, Rangel, já nos anos 50, critica nos economistas essa preocupação exclusiva com oportunidade de investimento. Essa preocupação com oportunidade de investimento está dando como resultado hoje que uma boa parte de nossos colegas geógrafos marxistas anglo-saxões estejam se tornando formidáveis supervisores do grande capitalismo pela sua preocupação com essas oportunidades de investimento. Basta ler o essencial que é escrito por nossos colegas californianos, notadamente do grupo de Los Angeles, onde a noção de região como lugar de vida de grupos heterogêneos desaparece, e o que aparece é uma geografia derivada de uma economia interessando a um tipo peculiar de atores, que são os atores hegemônicos.


Pois bem, Rangel, através do que ele chamava de unidades marginais, o seu grande debate sobre unidades marginais, o que ele dizia? Em um dos textos de Rangel, ele critica (critica, como se dizia nos anos 60, camaradamente) a posição de gente como Caio Prado, dizendo que, a respeito das ideias que tinham esses economistas em relação às economias marginais, quer dizer, às produções realizadas por unidades que tinham um nível técnico menos elevado, que a tendência à concentração do capital iria naturalmente levar à extinção dessas unidades técnicas e conduzir a uma espécie de homogeneização. E ele, Rangel, lembrava o fato de que esse movimento seria muito lento, e ele considerava que o estudo dessas unidades marginais seria algo indispensável para a possibilidade de um planejamento regional das regiões menos desenvolvidas.


Foi assim, por exemplo, que responsáveis pelo planejamento econômico do estado da Bahia decidiram, com o conselho de Rangel, propor paralelamente ao projeto de industrialização do nordeste, proposto por Celso Furtado, propor uma espécie de banco para acolher essas empresas marginais, que era uma garantia de emprego em regiões menos desenvolvidas. E Ignacio Rangel teve um papel central não só na formulação dessas ideias, mas também na formulação da ideia do banco que queríamos fundar para financiar essas empresas. Esse banco não pode ser criado por razões que não vou discutir agora, mas essa ideia de como se colocar frente à questão regional é uma ideia herdada da forma como Ignacio Rangel via essa questão. Ele não se deixava seduzir pela ideia do fatalismo da concentração do capital; ele discutia a questão a partir de um lado da atualidade e das possibilidades de evolução previsíveis.


Uma outra ideia que a gente encontra do Rangel dos anos 50 é essa ideia da população urbana como tendo um papel central na expansão industrial. Essa ideia não era admitida nos anos 50, nos anos 60 e ainda nos anos 70 nem pelos economistas da direita, nem pelos economistas da esquerda, que não acreditavam muito no papel da população e no papel dos serviços, que se deixavam extremamente comandar pela noção de indústria como dado motor, que aliás me parece ser um dos grandes problemas da interpretação da sociedade brasileira como um todo a partir de SP e, sobretudo, a partir da Unicamp, um vício, um mau vício, uma maneira deformada de enxergar a realidade brasileira, já que o movimento do território, na maior parte do Brasil, não se dava a partir da influência da indústria e sim do serviço. Pois bem, sem dizer essas palavras que são minhas, Ignacio Rangel insistia no papel da população urbana na expansão industrial. Então, eu trouxe aqui alguns recortes exclusivos, espero que vocês façam essa costura desses recortes da personalidade de Ignácio Rangel, e agora eu posso me dedicar ao título da palestra, tal como me impôs o doutor Armen.


Ignacio Rangel, o intelectual, intelectual, pois tinha um ponto de vista independente. Não há intelectual que essa pessoa não tenha ponto de vista independente. Isso é uma qualidade do intelectual. Também ele permitiu-se interpretações originais. Ele era formado por uma enorme cultura histórica, filosófica e de ciências humanas em geral, e, aplicando essa imensa cultura a situações concretas, Rangel pode propor interpretações originais. Ele foi também, desde os anos 50 e 60, quando marxista não era sinônimo de rebelde, ele foi um marxista rebelde que não se inclinava aos ditames do partido ao qual ele continuava ligado, consciente do papel que o partido exercia na transformação do Brasil. Ele era também um grande polemista. Naquele tempo, a palavra polêmica tinha o sentido que damos hoje a discussão.

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