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Rangel e a Geografia: algumas considerações

Atualizado: 11 de fev.

In: Ignacio Rangel: Decifrador do Brasil. Holanda, Felipe Macedo de; Almada, Jhonatan Uelson Pereira Souza de; Paula , Ricardo Zimbrão Affonso de (org.). São Luís: Edufma, 2014.


Ignacio Rangel pensador da formação social brasileira em seu mais amplo significado, isto é, das relações sociais de propriedade e de trabalho (pode-se citar, por exemplo, o Senhor de Engenho que era ao mesmo tempo vassalo do Rei de Portugal e Senhor de Escravo); da estrutura política (pacto de poder onde as classes dominantes se sucedem duas a duas) e da organização do território brasileiro (integração do arquipélago brasileiro com o fechamento das fronteiras externas, a quebra das fronteiras estaduais e a rodoviarização que se acelera após 30), não foi poluído pelo academicismo imperante nas universidades que sempre estiveram limitadas a interpretar o mundo e não de transformá-lo. Como um verdadeiro profeta se antecipava aos problemas debatendo com rigor, com seus pares e adversários, as medidas nacionalistas a serem tomadas pela administração pública federal de acordo com a realidade concreta apresentada.


Assim, fica muito transparente em sua obra que seu voluntarismo, longe de ser determinista, guardava estreito vínculo com o estágio alcançado pelo desenvolvimento das forças produtivas no âmbito das infraestruturas econômicas e numa escala superior - política superestrutural - das relações de produção. Consciente do seu tempo como cidadão numa formação social periférica assinalava que “a história não resolve problemas não formulados”, ou seja, se perguntava a todo o momento, qual a vantagem em concentrar energias numa mudança radical se as condições necessárias e suficientes para tal não estão ainda amadurecidas? Esse seu caráter revolucionário e pragmático de querer as coisas possíveis foi muito pouco compreendido e muitas vezes desqualificado pela insensatez dos anarco socialistas pequenos burgueses ou pela desfaçatez da direita reacionária.


Exerceu com dignidade sua cidadania, por um lado tecnicamente como profissional de carreira na administração pública e, por outro, politicamente militando sem descanso publicando artigos, notas e livros. Por ser um pensador independente e não integrar a corporação de ofício – Academia Universitária – suas ideias ou eram plagiadas ou descaradamente marginalizadas. Rangel foi um dos poucos pensadores a perceber que "o progresso técnico obtido por um país qualquer, tenderá a ser posto a disposição do restante da humanidade", ou conforme assinalou Trotsky(1978) "o desenvolvimento de uma nação historicamente atrasada conduz, necessariamente, a uma combinação original das diversas fases do processus histórico". Assim Rangel, conforme assinalou Mamigonian (1996), “não sofreu a angústia da influência, pois apelou para gênios como Marx e Lenin, grandes economistas como Keynes e Schumpeter, bem como dialogou com parceiros como Jesus Soares Pereira, Juvenal Osório Gomes, Jorge Ahumada, Domar Campos, e outros devidamente reconhecidos".


Ao lado de Caio Prado Jr e Celso Furtado, mas de forma muito mais criativa, foi responsável pela construção de uma interpretação original da história econômica do desenvolvimento brasileiro e, portanto "Obteve resultados semelhantes àqueles que a escola da regulação francesa realizou mais de vinte anos depois. As substituições estruturais de importações ocorridas no Brasil em cada fase 'b' dos ciclos longos corresponderam a verdadeiras regulações econômicas, incluindo seus enquadramentos jurídico- institucionais".


Conforme Mamigonian (1999) a geografia é uma ciência da crise, pois são nos momentos de radicais depressões que os homens sentem a necessidade maior de pensar a realidade na sua globalidade. Assim, a Geografia antiga (grega) como a geografia moderna (alemã) nasceu nessas circunstâncias. Foi na esteira da fase depressiva do terceiro ciclo de Kondratieff que a realidade - Revolução de 30 - impôs a necessidade de pensar a sociedade brasileira na sua totalidade. Rangel como amante da geografia e da história participou ativamente pegando em armas com 16 anos ao lado de Getúlio na Revolução de 30 e aos 21 anos como líder integrante da Coluna Prestes quando treinou 200 camponeses para invadir São Luís. Nessa empreitada foi preso.


Cumpriu pena por dois anos no Rio de Janeiro e oito anos em regime coacto na cidade de São Luís do Maranhão). Assim, num esforço de pensar a sociedade brasileira, perseguiu a partir do cárcere e durante toda sua trajetória e militância intelectual não só identificar os erros teóricos cometidos como também montar um quebra-cabeça global para compreender a estrutura e o funcionamento da economia e da sociedade brasileira. Sua aproximação com a geografia brasileira ocorre exatamente na crise estrutural da década de 80, através de debates, cursos, conferências etc. A partir de 1983 em praticamente todos os anos esteve em Florianópolis debatendo na Semana de Geografia, ministrando curso e participando de banca no PPGG-UFSC ou concedendo entrevista a Revista Geosul no Departamento de Geociências da UFSC.


É importante por em evidência que durante uma década a Geografia da UFSC reconheceu a excelência das ideias de Rangel para decifrar a crise estrutural da economia política brasileira. A prova cabal desta tese pode ser comprovada pela realização do Simpósio sobre o Pensamento de Ignácio Rangel, no ano de 1994, em comemoração ao seu aniversário de 80 anos. Mas, infelizmente, não foi possível contar com sua presença em virtude do seu desaparecimento, mas seus mais importantes interlocutores e amigos compareceram e as discussões realizadas foram devidamente registradas num livro com o título do referido evento.


A crise econômica iniciada na década de 80 havia sido prevista por Rangel quando foi incumbido por Jesus Soares Pereira de relatar a lei que criaria a Eletrobrás, uma vez que o cerne da presente crise encontra-se no gigantesco endividamento do setor público e no estrangulamento dos serviços de utilidade pública. Mas esta crise veio acompanhada de outra, a crise política, ou seja, a da dualidade. Na verdade durante os anos 90 vivia-se no dizer de Rangel uma apostasia (retrocesso), ou seja, Collor e FHC foram fieis representantes dos comerciantes agroexportadores hegemônicos políticos da segunda dualidade apeados do poder em 1930. Ora, a crise política referida significava o esgotamento do pacto de poder instalado a partir de 1930, e, mesmo reconhecendo o esforço dos governos Lula-Dilma, esses políticos ligados ao Partido dos Trabalhadores são ainda vistos com desconfiança pelos industriais brasileiros, classe social amadurecida para o exercício da hegemonia política da nação brasileira na quarta dualidade.


Por isso que o emperramento da economia se prolonga por mais de 30 anos, pois as mudanças institucionais necessárias (a concessão dos novos grandes serviços para a iniciativa privada), para a retomada do crescimento econômico estão começando a ser aprovadas e, ainda, não conseguiram desencadear a retomada sustentada do crescimento do PIB. Além das dificuldades inerentes a uma transição política da magnitude que é a passagem da 3ª para 4ª dualidade somam-se às resistências externas ao surgimento no Brasil de um capitalismo financeiro nacional.


O capitalismo financeiro brasileiro, em função do endividamento público, terá a incumbência de financiar a construção das acalentadas e estranguladas infraestruturas do país. Aliás, esta substituição de importação das infra-estruturas não é como as outras substituições industriais, pois nessas últimas o financiamento foi em grande medida obra do capitalismo financeiro estadunidense que deverá, agora, ser substituído pelo brasileiro. Mas a pressão do imperialismo financeiro, com o beneplácito setor bancário nacional e outros setores reacionários, não pararam por ai, impuseram, primeiramente, uma abertura comercial sem precedentes na história recente do país e, em seguida, promoveram a elevação a taxa de juros, e, em terceiro lugar a sobrevalorização cambial - a mais nociva das políticas macroeconômicas na atual conjuntura pois é a principal responsável pelas importações predatórias.


Cabe assinalar que o sistema financeiro brasileiro teve início com a institucionalização da correção monetária (sua escola primária), depois financiou inúmeras fusões, adquiriu empresas ou implantou outras como o Itautec, Itec, etc. (sua escola secundária). Nos anos 80 e 90 deveria alcançar sua maioridade caso se efetivasse pra valer a política de privatização na forma de concessão dos novos serviços de utilidade pública, a iniciativa privada brasileira. Assim obteria ganho de escala e competência para disputar com os credores internacionais as oportunidades de inversões que ainda estão ai por fazer. Mas, o Estado brasileiro voltou-se para o passado e induzido pelo capital financeiro nacional e internacional promoveu o dumping da economia nacional. Ou seja, a venda de empresas estatais supercapitalizadas. O exemplo do metrô de Porto Alegre é muito didático: numa licitação internacional, a Mafersa (estatal) é escolhida para fornecer os vagões do referido metrô, mas a Mitsubishi, que ficou em 2º lugar, recorreu junto ao órgão financiador do projeto, o Banco Mundial, e o Estado brasileiro teve que aceitar a decisão, deixando o país de manter em território nacional os rendimentos gerados nessa transação para uma empresa internacional.


Como se sabe, o EUA nesta época tinham o maior poder político e econômico no BIRD, seguido pelo Japão. As questões que se seguem são: o que deve ser privatizado? Novas linhas de metrô ou empresas supercapitalizadas fornecedoras de equipamentos para essas mesmas linhas? Qual o significado do ponto de vista macroeconômico da transferência do patrimônio de uma empresa estatal com capacidade ociosa, como a Mafersa e a Usiminas, para o setor privado? Não significa nada como assinalou Pizzo.


É preciso lembrar que o dumping da economia brasileira cresceu significativamente nos anos 90 com a falência de bancos nacionais e a consequente entrada de bancos estrangeiros no País. O deficiente financiamento das exportações brasileiras, a venda de ativos nacionais para o capital internacional, a incapacidade de promover a reforma agrária são alguns exemplos da história recente do país que vão exatamente no sentido inverso do interesse do desenvolvimento nacional que Rangel lutava, defendia e desejava. O reflexo desta conjuntura depressiva, como não poderia ser diferente, foi sentida de forma mais aguda nos grandes centros urbanos. Nos últimos anos da década de 90 em São Paulo a estagnação elevou estratosfericamente as taxas de desemprego para 17%.


A desindustrialização, a capacidade ociosa da indústria mecânica pesada, a carência de investimentos em infraestrutura provocam o crescimento das deseconomias de aglomeração gerando o aumento da violência, da poluição, dos engarrafamentos, etc. Por outro lado, potencialmente nesta metrópole nacional estavam disponíveis as grandes possibilidades de investimentos em infraestrutura (metropolitanos, saneamento etc.). Diferentemente dos cepalinos e dependentistas, Rangel é o único economista brasileiro que fez um marxismo rigoroso, pois trabalha dialeticamente com as categorias de Modo de Produção e formação social, daí a singularidade de relacionar atraso com dinamismo e então responder à questão: "por que a economia brasileira se desenvolve?"


Diferentemente Celso Furado procurou explicar o atraso. Rangel postula: Uma economia pode ser moderna e se encontrar estagnada, mas, também, e é o caso brasileiro, uma economia atrasada pode ser dinâmica. Ora, se analisarmos a história do Brasil ao longo dos cinco séculos de sua existência, constataremos que a distância em relação ao centro do sistema vem se encurtado gradativamente, o que se deve a questão da dualidade, através da qual as influências externas inserem o país no movimento cíclico do capitalismo, denominado de "ciclos longos" por Kondratieff, conceito este posteriormente corroborado por Rangel, gerando essa aproximação do Brasil aos grandes movimentos da economia mundial.


A passagem da 3ª para a 4ª dualidade, que conforme Rangel consiste no próprio fim da dualidade uma vez que tanto no pólo interno como no externo são representados por relações capitalistas no campo e nas cidades. Nesse sentido o Brasil perdeu a oportunidade de alcançar sua independência economica, o que poderia ter ocorrido na década de 80, se o desenvolvimento nacional tivesse sido pautado para o investimento, com recursos próprios, em infraestrutura e com incentivo à indústria nacional na produção de equipamentos para o mercado interno, o queimplicaria na melhoria das condições básicas de vida da população tanto no campo como nas cidades. Essas medidas reduziriam o endividamento do Estado brasileiro e aumentariam a capitalização da indústria nacional alem da geração de empregos.


Para Rangel, no Brasil atual, não existe uma questão tecnológica como está colocada para os países integrantes do centro do sistema capitalista. A fase "b" do 4º Kondratieff (que possivelmente nos encontramos às vésperas de seu desfecho) vem sendo marcada pelo engendramento de inovações tecnológicas ligadas, sobretudo, a microeletrônica que imprimirá no futuro próximo à retomada do crescimento da economia mundial (fase "a" de 5º Kondratieff). Não resta dúvida que o Brasil sentirá as consequências destas inovações tecnológicas (a plena robotização e informatização da economia e da sociedade). Mas esse novo paradigma tecnológico que possibilitará a recuperação dos baixos índices de crescimento econômico verificados nos países centrais desde a "crise do petróleo" em 1973, não tem o mesmo significado para nós brasileiros.


Assim, essas inovações tecnológicas fundamentais são para as economias centrais praticamente as únicas possibilidades concretas de maciços investimentos, pois a estrutura produtiva existente a ser sucateada dará lugar gradativamente à outra moderníssima capaz, portanto, de recuperar a lucratividade perdida. Investimentos gigantescos em novas bases tecnológicas caracterizarão, portanto, uma nova fase expansiva da economia. Cabe acrescentar que em praticamente todos os países centrais a infraestrutura existente dos grandes serviços de utilidade pública é expressiva e atende satisfatoriamente às necessidades básicas da população e da economia, não se constituindo, portanto, no "nó de estrangulamento", sendo capaz de imprimir investimentos suficientes para uma duradoura fase expansiva da economia.


No caso brasileiro, a situação é bastante diversa, pois a construção da última etapa do edifício industrial criou em certa área da economia (mecânica e construção civil pesada e petroquímica) uma supercapacidade de produção, caracterizada por Rangel, como "pólo" deociosidade. Ao mesmo tempo, criava-se uma "área" de estrangulamento, isto é, "atividades insuficientemente desenvolvidas, carecidas, portanto, de investimentos que as desenvolvam". Assim o Brasil tem carências significativas nas infraestruturas dos serviços públicos que requerem maciços investimentos com tecnologia existente e em boa parte dominada pela indústria brasileira.


Segundo Rangel a modernização desses serviços públicos é necessária e suficiente para que a economia brasileira avance rumo a um novo "milagre" como ocorreu nos anos 70, quando as taxas de crescimento industrial registravam índices de dois dígitos ao ano. Entretanto o que ocorreu nos anos 90 no Brasil foi bem diferente do que propunha e desejava Rangel na sua incansável militância intelectual dos anos 80 e início dos anos 90. Seu sacerdócio de querer ajudar a nação a reencontrar o trilho do desenvolvimento ficou registrado em jornais de circulação nacional, palestras, mesas redondas, artigos para diversos periódicos e em seus livros. Mas a confusão de ideias imperava que, aliás, foi denunciada no final dos anos 80 por Biondi: "agora estamos jogando tudo o que se pensava no lixo, e a moda é falar - como em 68 - da competitividade, da necessidade de inserir a economia nacional no contexto mundial. Penso que estamos fazendo isto de forma atabalhoada, sem discussão real do que serve para o país. Está todo mundo com vergonha de não ser moderninho. Todo mundo."


Esta conclusão de Biondi revela exatamente o que vem ocorrendo com parte significativa da produção intelectual brasileira. Uma das mais importantes ideias de Rangel para superar a crise estrutural vivida está exatamente no casamento dos bancos com a indústria para o surgimento de um capitalismo financeiro brasileiro, que é "o estágio supremo do desenvolvimento do capitalismo, antessala do socialismo", que, aliás, está na "ordem natural das coisas" como costumava assinalar.

Este casamento significaria a escola superior do capitalismo brasileiro. Através dessa união de bancos e a indústria nacional o financiamento do avanço tecnológico do Brasil poderia ser viabilizado, inserindo o Brasil no novo ciclo do capitalismo.


Outro importante aspecto ressaltado por Rangel para o desenvolvimento da economia brasileira e a entrada do país nesse novo estágio do capitalismo se processaria através da concessão dos serviços públicos à iniciativa privada, sendo o Estado como poder concedente e na medida em que avançassem estas concessões, o próprio setor privado exigiria do poder estatal que assumisse as funções de credor hipotecário, pois é o único que pode receber como garantia o imobilizado de umserviço de utilidade pública. Rangel assinalava: "Qual o banco privado que receberia como garantia os túneis de determinada linha de metrô?"


A demora na implementação dessa medidas institucionais criou nas principais regiões metropolitanas do país, como foi comentado anteriormente, deseconomias de aglomeração, pois em São Paulo "(a) participação no valor da produção industrial foi reduzida de 44% em 1970 para 26% em 1990, e o emprego de 34% para 25%, caracterizando um dos mais rápidos e marcantes processos de reversão da polarização registrados na história da industrialização mundial" criando, como não poderia deixar de ser, ambiente desolador e cruel numa das maiores concentrações populacionais do planeta.


Após analisar alguns dos principais aspectos que viabilizariam a retomada do desenvolvimento econômico do país, baseados na obra de Rangel, entre eles: a privatização dos novos serviços públicos, o incentivo da indústria nacional para o avanço tecnológico e a construção de uma infraestrutura condizente com os novos caminhos delineados pelo capitalismo brasileiro atual, Rangel também realizou uma análise sobre o setor rural e da reforma agrária no Brasil.


Com relação ao espaço agrário, uma das teses existentes era a do crescimento bloqueado, discutido por Maria Conceição Tavares, Paul Singer e Celso Furtado, durante crise dos anos 60, era atribuído à incapacidade da agricultura de produzir alimentos suficientes para abastecer as cidades, pois a estagnação do setor agrícola resultava do atraso do meio rural brasileiro. Esta conjuntura deficiente, na opinião destes intelectuais de esquerda, só poderia ser resolvida por uma ampla reforma agrária no país. Para Rangel, entretanto, a crise agrária decorria da mecanização da agricultura imposta pela penetração do capitalismo no campo que, por sua vez, liberava grandes contingentes de mão de obra os quais as cidades não conseguiam absorver. Transferindo a tensão social do campo para as cidades e a reforma agrária foi, assim, sofrendo paulatinamente perda de significado econômico e social.


A crise cíclica de acumulação do capitalismo industrial brasileiros do inicio dos anos 60 tem suas consequências primeiras sentidas no meio urbano, pois as cidades tinham que produzir o suficiente para atender suas próprias necessidades e abastecer o meio rural, enquanto que o campo produzia basicamente para abastecer as cidades. Assim, pode-se inferir que a estagnação estava nas cidades e não no campo. Ora, na verdade, como a agricultura estava submetida a uma compra oligopsônica, assim o rebaixamento dos preços dos produtos agrícolas, promovido pelos atravessadores, na então crise vivida, desestimulava a produção de determinados produtos no campo.


A consequência era o desabastecimento das cidades, pois a produção agrícola não tinha preço que fosse capaz de remunerar os investimentos realizados. O problema só se resolveu quando os militares, na segunda metade dos anos 60, estabeleceram a política dos preços mínimos para que os produtores rurais tivessem garantia do escoamento de suas produções. Para Rangel a estrutura agrária latifundiária permaneceu intocada durante todo o processo de desenvolvimento industrial, devido ao pacto de poder estabelecido nos anos 30 (3ª Dualidade), quando o latifúndio feudal voltado para o mercado interno, sobretudo do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais e do Sertão Nordestino, juntamente com a burguesia industrial paulista apeiam do poder os setores ligados à agro-exportação, ou seja, os comerciantes de exportação e importação e o latifúndio exportador. Assistiu-se desde então a um trabalho complexo de engenharia política que compatibilizasse os conflitos em jogo, ou seja, industrialização sim reforma agrária não.


Cabe lembrar que o feudalismo precoce do sertão nordestino e do pampa gaúcho foi uma verdadeira escola para criação de lideranças políticas capazes de protagonizar a revolução nacionalista de 1930, como Getúlio Vargas, João Pessoa etc. Mesmo com a expansão da fronteira agrícola, com o desenvolvimento da indústria e a consequente chegada do capitalismo no campo, que Rangel denomina de 3º descobrimento do Brasil, os princípios institucionais do latifúndio tradicional continuaram imperando. Estas circunstâncias imprimiram um brutal processo de desruralização da população que proporcionou um dos mais extraordinários processos urbanização do mundo. O ritmo anual médio entre 1960 e 1991 foi de pouco mais de 2,5 milhões de novos citadinos, o que representa a população urbanizada de uma grande São Paulo em pouco mais de seis anos.


O primeiro descobrimento se deu com a chegada dos portugueses ao litoral, o segundo quando os Bandeirantes se embrenharam pelo interior do país e por último com a anexação de terras até então consideradas não agriculturáveis do Cerrado , da Hiléia, do Sertão etc. teve-se o terceiro “descobrimento” do Brasil.Ao mesmo tempo, juridicamente a terra passa paulatinamente a desempenhar papel decisivo nos financiamentos agrícolas, pois essa, ao se tornar um bem comercializável, passa a servir de garantia aos empréstimos junto aos credores. A introdução do capitalismo na agricultura brasileira vai significando cada vez mais uma cisão no interior da classe hegemônica da 3ª Dualidade, pois o latifúndio capitalista que emerge submete o semi-salariato-rural (boia fria) pela força do capital e da técnica e não pelo poder da propriedade da terra como velho latifúndio impunha.


Assim, o novo latifúndio agrícola capitalista poderia conviver tranquilamente com uma reforma agrária. Reforma esta que permitiria aos trabalhadores do campo manter um quintal com alguns milhares de metros quadrados junto à sua própria residência. Além de poder produzir parte de sua subsistência teriam um destino seguro junto as suas famílias nos períodos da entre safra. Esta medida daria um significativo salto de qualidade na vida de milhões de boias-frias que perambulam pelo meio rural brasileiro e que estão com suas famílias cindidas e, portanto, sujeitas aos problemas das periferias urbanas brasileiras, como a prostituição da mulher e das meninas, o tráfico de drogas, os pequenos furtos, etc.


Com a recomposição da unidade familiar a migração em definitivo para o meio urbano será, agora, muito bem avaliada para verificar se realmente resultará em melhoria da qualidade de vida de sua família. Por outro lado a redução do fluxo migratório para as cidades proporcionará, indiretamente, melhores condições salariais para os trabalhadores do meio urbano. Uma nova conjuntura nas relações trabalhista será vivida com a queda na oferta de mão de obra e, portanto, se o capital necessitar daqueles trabalhadores rurais terá que oferecer vantagens que justifiquem que eles deixem campo e venham para cidade.


A questão agrária como assinalada anteriormente é, portanto, uma questão financeira, somente com surgimento do capitalismo financeiro brasileiro poderá se encaminhar tal problemática, mesmo porque não é possível sonhar com dissolução, para efeitos de reforma agrária, da fazenda agrícola capitalista. Precede, como se vê, que a economia industrial se restabeleça da crise em que vive para programar uma reforma agrária viável de ser executada, com o preço da terra estável e sem os acréscimos especulativos.


As visões ideológicas tanto de esquerda como de direita que vêem na “globalização” da economia um mal necessário e inevitável, uma vez que as fronteiras nacionais são extrapoladas por atividades que se difundem pelo mundo através das grandes empresas, estão em antagonismo com a visão de Rangel. No comércio exterior, por exemplo, ao invés desta multilateralidade da abertura do mercado para que a "mão invisível" regule a economia, propõe, Rangel, a aproximação do Brasil aos países da periferia do sistema capitalista e os chamados emergentes, nas relações comerciais e o fechamento às importações de capitais, pois, potencialmente, o Brasil possui condições de financiar seu próprio desenvolvimento, como vem fazendo à décadas a Coréia do Sul e Taiwan, conforme Oliveira: "Para implementar essa opção por sua própria industrialização, precisaram as elites dos dois NPIs asiáticos dotar-se de um Estado do tipo do moderno Estado japonês. Um Estado apto a também mediar, no interior do próprio país, entre as forças do mercado e a decisão consensual das elites de elevar a economia nacional ao nível da plena industrialização."


Na mesma direção de proteção do mercado nacional contra o capital especulativo, Chesnais assinala que: "A integração internacional dos mercados resulta, sim, da liberalização e desregulamentação que levaram à abertura dos mercados nacionais e permitiram sua integração em tempo real. Mas baseia-se, sobretudo, em operações de arbitragem feitas pelos mais importantes e mais internacionalizados gestionários de carteiras de ativos, cujo resultado decide a integração ou a exclusão em relação às 'benesses das finanças de mercado'".


À “ração diária” de venda de dois bilhões de dólares por parte do Banco Central permitiu a sangria de mais de 63 bilhões dólares das reservas cambiais nos últimos quatro meses de 2013.Tal política de queima de divisas tinha objetivo de frear a desvalorização do Real para combater a elevação das taxas de inflação. O resultado desastroso não parou por ai, pois o rombo do déficit em transações corrente foi de mais de 81 bilhões de dólares. Essa política de câmbio sobrevalorizado que perdura desde o segundo governo Lula tem destruído importantes setores da indústria brasileira com as importações predatórias cuja consequência foi sentida na balança comercial de produtos industrializados que somou um déficit de 54 bilhões de dólares em 2013 conforme o Banco Central do Brasil.


Para Rangel que tem a mais bem estruturada tese sobre a inflação é um grande equívoco eleger a inflação como inimiga numero um. Para Rangel a inflação é um epifenômeno, ou seja, é a consequência e não a causa da crise. Na verdade o problema da crise está na capacidade ociosa da indústria de bens de capital que não tem encomenda porque o setor de infraestrutura não avança na velocidade que poderia. Mas, o mais pernicioso dos problemas é que a política de câmbio sobrevalorizado tem conduzido as construtoras de infraestrutura a realizar suas encomendas fora do Brasil. Ou seja, além dos serviços de utilidade pública avançarem lentamente seus efeitos multiplicativos não ocorrem no mercado doméstico nacional.


Fica muito evidente que o problema da inflação tem como base a política econômica. A proposta de Rangel para o comércio de exportação e importação, nesta altura do desenvolvimento das forças produtivas nacionais, deve ser organizada como "bilateral, planificado e de Estado. Portanto, afirmava categoricamente Rangel: "E ao contrário do que muitos pensam, a estatização do comércio exterior significará, um tremendo avanço na história do comércio internacional." Na medida em que as exportações aumentam, a produção tratará de acompanha-la, mas o que se assiste é o aumento das importações a partir, principalmente, de financiamentos externos de produtos que nossa indústria já possui condições de produzir, mas que ainda não adquiriu capacidade para se lançar na concorrência internacional. Um exemplo que mostra claramente que as convicções de Rangel são verdadeiras é o caso do setor automobilístico.


Quando, inicialmente, o governo liberou as importações, houve uma grande entrada de automóveis estrangeiros no país, mas o oligopólio automobilístico pressionou e o governo teve que voltar atrás aumentando as tarifas para os níveis históricos de 70%. Assim, a partir de pressões do setor automobilístico, o governo acabou por imprimir uma política industrial para o setor que resultou na instalação de novas montadoras (Peugeot, Kia, Renault, Honda etc.) e de novas plantas das já instaladas no país (GM, VW, Ford, Mercedes Benz, etc.). Apesar das vantagens absurdas estabelecidas pelos governos estaduais e municipais para serem a sede das novas fábricas, esta política é muito mais promissora para os trabalhadores e para economia brasileira do que a importação de carros japoneses, coreanos, ou americanos.


Na verdade, se nos reportarmos ao histórico do desenvolvimento industrial de qualquer país do mundo, encontraremos uns sem-número de medidas governamentais que têm por objetivo proteger a indústria nacional. No final dos anos 90 foi divulgado pelo Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo um estudo da FUNCEX (Fundação Centro do Comércio Exterior) sobre o sistema de proteção aplicado por dez parceiros comerciais do Brasil, exceto os do Mercosul, contra produtos brasileiros. Segundo o ministro Dornelles, "a abertura comercial dos países desenvolvidos é apenas retórica. 'não há ninguém mais protegido do que os países exportadores de capital, os mesmos que se apresentam como donos do liberalismo comercial. No Brasil a abertura da economia matou culpados (os setores que não se adaptaram a novas condições de comércio) e inocentes (os atingidos pelas restrições de outros países. Os maiores obstáculos são mantidos pelos EUA e União Européia. As tarifas aplicadas pelo Canadá a alguns produtos lácteos brasileiro chega a 339%".


Como se vê, a década de 90 foi muito dura para a sociedade brasileira, pois a desordem tomou conta da política econômica brasileira, e alguns setores denunciavam o protecionismo dos principais parceiros econômicos do país. Enquanto outros setores não cansavam de afirmar que a abertura era irreversível por conta do processo de "globalização" da economia mundial. As empresas estão quebrando e importantes líderes empresariais caminhavam como lemminges resignadamente rumo ao precipício (este é o lado feudal dos empresários que se submetem servilmente diante do poder estatal).


Essas breves notas sobre o pensamento de Ignácio Rangel tiveram por objetivo primeiramente destacar à importância do referido autor na analise da economia brasileira. Análise esta que não se baseou somente em marcos teóricos, mas acima de tudo pautados no exercício profissional na área pública e privada e na longa trajetória política de militancia que se estendeu desde anos 30 até se desaparecimento. A constatação de Rangel de que as teorias clássicas existentes e que preconizavam a reforma agraria como ponto fundamental para o desenvolvimento do país, não seriam suficientes e, principalmente, que a complexidade da economia brasileira traziaimplicita uma dualidade entre os pólos externos e internos que frequentemente pareciam contraditórios mas que por outro lado se complementavam numa visão ampliada desse cenário.


Esse ano, que seria o ano do centenário de Rangel, sua visão política e econômica do país continua atual sendo que seus pressupostos sobre inflação, endividamento do Estado, reforma agrária, desenvolvimento tecnológico, investimento em infraestrutura, privatização e política econômica são essenciais para a compreensão da trajetória vindoura do país. A teoria de Rangel possibilita uma reflexão e aponta caminhos práticos para a inserção dinâmica do país no proxímo ciclo do capitalismo, com a tônica do crescente desenvolvimento tecnológico em todos os setores da economia, caminho esse necessário para que o Brasil supere a retomada de seu papel tradicional de exportador de commodities.


Para a geografia a contribuição de Rangel também é fundamental possibilitando uma visão holística que engloba muito mais do que a noção de espaço e tempo mas também a articulação destes com a esfera política e econômica que no seu conjunto possibilitam uma visão de sociedade, mercado e Estado. As ideias de Rangel estiveram presentes na formação e construção dos trabalhos de dissertação e tese sobre o comércio de múltiplas filiais defendidas pelo autor deste artigo, reconhecendo que a formação de uma rede urbana concentrada, consequência do desenvolvimento industrial oligopolista, e a integração do território nacional pelas rodovias, viabilizadas pra valer com a terceira dualidade (pacto de poder nacionalista vitorioso com a Revolução de 1930) foram às bases materiais para o estabelecimento das redes de lojas de múltiplasfiliais comercias no Brasil.


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